Nenhum mito cosmogônico stricto sensu se conservou. Podemos, porém, identificar, na tradição historiográfica e em diversas lendas chinesas, os deuses criadores,, evemerizados e secularizados. Dessa maneira, conta-se que P’an-ku, um antropomorfo primordial, nasceu “no tempo em que o Céu e a Terra eram um caos semelhante a um ovo”. Quando P’an-ku morreu, sua cabeça “converteu-se num pico sagrado, seus olhos transformaram-se no sol e na lua, a gordura nos rios e nos mares, os pelos e cabelos nas árvores e nos outros vegetais”. Reconhece-se a essência do mito que explica a Criação através do sacrifício de um Ser primordial: Tiamat (cf. § 21), Purusa (§ 75), Ymir (§ 173). Uma alusão do Chu-King prova que os antigos chineses conheciam outro tema cosmogônico, atestado em numerosos povos e em níveis diferentes de cultura: “O Augusto Senhor (Huang-ti) incumbiu Tch’ong-li de cortar a comunicação entre a Terra e o Céu, a fim de que cessassem as descidas (dos deuses)”. A interpretação chinesa do mito — especialmente os deuses e os espíritos que desciam à Terra para oprimir os homens — é secundária; a maior parte das variantes exalta, ao contrário, o caráter paradisíaco da época primordial, quando a extrema proximidade entre o Céu e a Terra permitia que os deuses descessem e se misturassem aos humanos, e que os homens subissem ao Céu escalando uma montanha, árvore ou escada, ou ainda deixando-se carregar pelas aves. Como resultado de certo acontecimento mítico (um “erro ritual”), o Céu viu-se brutalmente separado da Terra, foi cortada a árvore ou o cipó, ou foi removida a Montanha que tocava o Céu. No entanto, certos seres privilegiados — xamãs, místicos, heróis, soberanos — são capazes de, em êxtase, subir ao Céu, restabelecendo assim a comunicação interrompida in illo tempore. Voltamos a descobrir, ao longo de toda a história da China, o que se poderia denominar a nostalgia do Paraíso, ou seja, o desejo de reintegrar, através do êxtase, uma “situação primordial”: aquela representada pela unidade/totalidade original (huen-tuen) ou o tempo em que se podiam encontrar diretamente os deuses.
Finalmente, num terceiro mito, trata-se de um casal irmão-irmã, Fu-hi e Niu-kua, dois seres de corpo de dragão, que costumam aparecer na iconografia enlaçados pelas caudas. Por ocasião de um dilúvio, “Niu-kua reparou o Céu azulado com pedras de cinco cores, cortou as patas de uma grande tartaruga a fim de erguer quatro pilares nos quatro polos, matou o dragão negro (Kong-kong) para salvar o mundo, amontoou cinzas de junco para deter as águas transbordadas”. Relata outro texto que, após a Criação do Céu e da Terra, Niu-kua modelou os homens com terra amarela (os nobres) e lama (a gente pobre e miserável).
Podemos também identificar o tema cosmogônico na tradição historicizada de Yu o Grande. No reinado do Imperador (mítico) Yao, “o mundo ainda não estava em ordem, as vastas águas corriam de maneira desordenada e inundavam o mundo”. Ao contrário de seu pai, que, para dominar as águas, construíra diques, Yu “cavou a terra e fez com que (as águas) escorressem para os mares, perseguiu serpentes e dragões, obrigando-os a se instalar nos pântanos” 33. Todos esses motivos — a Terra recoberta de água, a multiplicação das serpentes e dos dragões — possuem estrutura cosmogônica. Yu exerce o papel de um demiurgo e Herói-Civilizador. Para os letrados chineses, a ordenação do Mundo e a fundação das instituições humanas equivalem à cosmologia. O Mundo é “criado” quando, expulsando as forças do mal para os quatro horizontes, o soberano instala-se num “Centro” e conclui a organização da sociedade.
Mas o problema da origem e formação do mundo interessava a Lao-tsé e aos taoistas, o que implica a antiguidade das especulações cosmogônicas. Lao-tsé e os seus discípulos vão buscar ensinamentos nas tradições mitológicas arcaicas, e o fato de que o essencial do vocabulário taoista — huen-tuen, tao, yan e yin — seja compartilhado pelas outras escolas prova o seu caráter antigo e pan-chinês. Ora, como veremos nas PP. 32-33, a origem do mundo segundo Lao-tsé retoma, numa linguagem metafísica, o antigo tema cosmogônico do caos (huen-tuen) enquanto totalidade semelhante a um ovo. (HCIR)