cristianismo esotérico

O cristianismo nasceu em 27 na Galileia com o sermão de Jesus sobre a montanha: “Bem-aventurados os que têm um coração de pobre, porque deles é o Reino dos Céus!” (Mateus, 5, 3). Nada parece, à primeira vista, mais distante do esoterismo. Porém, desde já o simbolismo da montanha intervém: é o lugar da elevação para o céu e da revelação para a terra. Antes de mais nada, a infância espiritual, para os esoteristas, é aquela do duas vezes nascido, do iniciado: “Se não vos transformardes e vos tornardes como criancinhas, não entrareis no Reino dos Céus” (18, 3). ‘Transformar/retornar: trata-se propriamente de reversão.

O cristianismo atinge a Europa em 64. A evangelização tem seu princípio após 17 séculos. Essa duração demonstra apenas que o Ocidente possui outras religiões, outras filosofias, outros esoterismos, e mais poderosos. O cristianismo chega depois dos esoterismos (o druidismo, por exemplo), antes dos esoterismos (o antroposofismo, por exemplo), ao mesmo tempo que os outros esoterismos (o mitracismo, por exemplo); por outro lado, queira ou não, o cristianismo vive com o esoterismo: seu primeiro herético é um esoterista (Prisciliano, em 375), seu fundador passa por um ‘grande iniciado’, o cristianismo veicula as ideias e os ritos esotéricos — mesmo se eles adquirem aqui um aspecto diferente: uso de símbolos, recorrência à parábola, crença na taumaturgia…

O mistério cristão gira em torno de três questões.

• O enigma da pessoa de Jesus. Que significa ‘Cristo’? Que sentido atribuir aos símbolos de Jesus Cristo: o peixe, o trigrama JHS, o pastor? Os docetas e os monofisistas discordam quanto à sua natureza.

• O segredo do Reino dos Céus. Jesus anuncia o Reino de Deus; este se define no presente como uma transformação espiritual (metanoia) e no futuro como uma imortalidade bem-aventurada. É preciso distinguir o Reino de Deus e o Reino dos Céus? Por que Jesus só se pronuncia por imagens e parábolas?

• O arcano sacramental. Que significado dar aos milagres? Pode-se identificar no batismo e na comunhão os ritos iniciáticos? Como compreender que Jesus tenha dito “Não atireis aos porcos as vossas pérolas” (Mateus, 7,6) e “O que eu vos digo na escuridão, dizei-o as claras” (Mateus, 10, 27)? A primeira comunidade era organizada em associação clandestina ou em confraria mistérica? O cristianismo distingue os carnais (sarkinoi) dos espirituais (pneumatikoi) como os gnósticos (Paulo, 1 Coríntios, 2)?

A questão, de forma mais geral, resume-se ao seguinte: existe esoterismo cristão ou cristianismo esotérico? No primeiro caso, o cristianismo é fundamentalmente um esoterismo que se degradou em religião. No segundo, o cristianismo é uma religião que comporta alguns elementos esotéricos e adquiriu algumas formas esotéricas. É necessário interrogar os textos. A hermenêutica é também, por excelência, a ciência do cristão.

Guénon (Observações sobre o esoterismo cristão, VIII): “Antes de mais nada, é imprescindível que se observe bem que dizemos ‘esoterismo cristão’, e não ‘cristianismo esotérico’. Não se trata, realmente, de uma forma especial de cristianismo; trata-se do lado ‘interior’ da tradição cristã. E é fácil compreender que existe aí mais do que uma simples nuance. Além disso, quando há necessidade de se distinguir numa forma tradicional duas faces, uma exotérica e outra esotérica, deve ficar claro que essas faces não dizem respeito ao mesmo domínio, se bem que não possa haver entre elas conflito ou oposição de nenhum tipo”. (Riffard)

Pierre Riffard