Para o homem religioso, o espaço não é homogêneo: o espaço apresenta roturas, quebras; há porções de espaço qualitativamente diferentes das outras. “Não te aproximes daqui, disse o Senhor a Moisés; tira as sandálias de teus pés, porque o lugar onde te encontras é uma terra santa.” (Êxodo, 3: 5) Há, portanto, um espaço sagrado, e por consequência “forte”, significativo, e há outros espaços não sagrados, e por consequência sem estrutura nem consistência, em suma, amorfos. Mais ainda: para o homem religioso essa não-homogeneidade espacial traduz-se pela experiência de uma oposição entre o espaço sagrado – o único que é real, que existe realmente – e todo o resto, a extensão informe, que o cerca.
É preciso dizer, desde já, que a experiência religiosa da não homogeneidade do espaço constitui uma experiência primordial, que corresponde a uma “fundação do mundo”. Não se trata de uma especulação teórica, mas de uma experiência religiosa primária, que precede toda a reflexão sobre o mundo. É a rotura operada no espaço que permite a constituição do mundo, porque é ela que descobre o “ponto fixo”, o eixo central de toda a orientação futura. Quando o sagrado se manifesta por uma hierofania qualquer, não só há rotura na homogeneidade do espaço, como também revelação de uma realidade absoluta, que se opõe à não realidade da imensa extensão envolvente. A manifestação do sagrado funda ontologicamente o mundo. Na extensão homogênea e infinita onde não é possível nenhum ponto de referência, e onde, portanto, nenhuma orientação pode efetuar-se, a hierofania revela um “ponto fixo” absoluto, um “Centro”.
Vemos, portanto, em que medida a descoberta – ou seja, a revelação – do espaço sagrado tem um valor existencial para o homem religioso; porque nada pode começar, nada se pode fazer sem uma orientação prévia – e toda orientação implica a aquisição de um ponto fixo. É por essa razão que o homem religioso sempre se esforçou por estabelecer-se no “Centro do Mundo”. Para viver no Mundo é preciso fundá-lo – e nenhum mundo pode nascer no “caos” da homogeneidade e da relatividade do espaço profano. A descoberta ou a projeção de um ponto fixo – o “Centro” – equivale à Criação do Mundo, e não tardaremos a citar exemplos que mostrarão, de maneira absolutamente clara, o valor cosmogônico da orientação ritual e da construção do espaço sagrado.
Em contrapartida, para a experiência profana, o espaço é homogêneo e neutro: nenhuma rotura diferencia qualitativamente as diversas partes de sua massa. O espaço geométrico pode ser cortado e delimitado seja em que direção for, mas sem nenhuma diferenciação qualitativa e portanto sem nenhuma orientação – de sua própria estrutura. Basta que nos lembremos da definição do espaço dada por um clássico da geometria. Evidentemente, é preciso não confundir o conceito do espaço geométrico homogêneo e neutro com a experiência do espaço “profano” que se opõe à experiência do espaço sagrado, e que é a única que interessa ao nosso objetivo. O conceito do espaço homogêneo e a história desse conceito (pois foi adotado pelo pensamento filosófico e científico desde a Antiguidade) constituem um problema completamente diferente, que não abordaremos aqui. O que interessa à nossa investigação é a experiência do espaço tal como é vivida pelo homem não religioso, quer dizer, por um homem que recusa a sacralidade do mundo, que assume unicamente uma existência “profana”, purificada de toda pressuposição religiosa.
É preciso acrescentar que uma tal existência profana jamais se encontra no estado puro. Seja qual for o grau de dessacralização do inundo a que tenha chegado, o homem que optou por uma vida profana não consegue abolir completamente o comportamento religioso. Isto ficará mais claro no decurso de nossa exposição: veremos que até a existência mais dessacralizada conserva ainda traços de uma valorização religiosa do mundo.
Mas, por ora, deixemos de lado este aspecto do problema e limitemo-nos a comparar as duas experiências em questão: a do espaço sagrado e a do espaço profano. Lembremo-nos das implicações da primeira: a revelação de um espaço sagrado permite que se obtenha um “ponto fixo”, possibilitando, portanto, a orientação na homogeneidade caótica, a “fundação do mundo”, o viver real. A experiência profana, ao contrário, mantém a homogeneidade e portanto a relatividade do espaço. Já não é possível nenhuma verdadeira orientação, porque o “ponto fixo” já não goza de um estatuto ontológico único; aparece e desaparece segundo as necessidades diárias. A bem dizer, já não há “Mundo”, há apenas fragmentos de um universo fragmentado, massa amorfa de uma infinidade de “lugares” mais ou menos neutros onde o homem se move, forçado pelas obrigações de toda existência integrada numa sociedade industrial.
E, contudo, nessa experiência do espaço profano ainda intervêm valores que, de algum modo, lembram a não homogeneidade específica da experiência religiosa do espaço. Existem, por exemplo, locais privilegiados, qualitativamente diferentes dos outros: a paisagem natal ou os sítios dos primeiros amores, ou certos lugares na primeira cidade estrangeira visitada na juventude. Todos esses locais guardam, mesmo para o homem mais francamente não religioso, uma qualidade excepcional, “única”: são os “lugares sagrados” do seu universo privado, como se neles um ser não religioso tivesse tido a revelação de uma outra realidade, diferente daquela de que participa em sua existência cotidiana. (Eliade)