Podemos ver que existe invariavelmente nas festas desse gênero um elemento “sinistro” e mesmo “satânico”, e que, de modo especial, é precisamente esse elemento que agrada ao vulgar e excita a sua satisfação. Aí está, com efeito, alguma coisa que é muito apropriada, muito mais que outra qualquer, para satisfazer às tendências do “homem decaído”, na medida em que essas tendências o impelem a desenvolver sobretudo as possibilidades mais inferiores de seu ser. É nisso em particular que reside a verdadeira razão de ser das festas em questão. Trata-se, em suma, de “canalizar”, de algum modo, essas tendências e de torná-las tão inofensivas quanto possível, dando-lhes ocasião de se manifestarem, mas somente durante períodos muito curtos e em circunstâncias bem determinadas, estabelecendo, assim, para essa manifestação, limites estreitos que não é permitido ultrapassar. Se não fosse assim, essas mesmas tendências, por falta de receberem o mínimo de satisfação exigida pelo estado atual da humanidade, correriam o risco de explodir, se pudermos assim dizer, e estender seus efeitos à existência inteira, coletiva e individual, causando uma desordem muito mais grave do que a que se produz apenas durante alguns dias especialmente reservados a esse fim, e que é muito menos temível por estar como que “regularizada”. Por um lado, esses dias estão colocados em certa medida fora do curso normal das coisas, de modo que não exerce sobre ele qualquer influência apreciável, e no entanto, por outro lado, o fato de que não existe aí nada de imprevisto “normaliza” de certa forma a própria desordem e a integra na ordem total. (Guénon)
Acrescentaremos que se as festas dessa espécie estão-se reduzindo cada vez mais, e só parecem despertar o interesse do povo, é porque, numa época como a nossa, elas perderam na verdade sua razão de ser. De fato, como se poderia tratar ainda de “circunscrever” a desordem e encerrá-la em limites rigorosamente definidos, quando está espalhada por toda parte e se manifesta sem cessar em todos os domínios em que se exerce a atividade humana? Se nos mantivermos presos às aparências exteriores e a um ponto de vista simplesmente “estético”, poderíamos ser tentados a nos congratular com o desaparecimento quase completo dessas festas, em especial pelo aspecto “disforme” de que se revestem, como é inevitável. Mas essa desaparição, ao contrário, quando se vai ao fundo das coisas, constitui-se em sintoma muito pouco tranquilizador, pois revela que a desordem irrompeu em todo curso da existência e se generalizou a tal ponto que, pode-se dizer, estamos na realidade vivendo um sinistro e “eterno carnaval”. (Guénon)