A hermenêutica é a busca do sentido, da significação ou das significações que tal ideia, ou tal fenômeno religioso tiveram através da história. É possível fazer a história das diversas expressões religiosas. Mas, a hermenêutica é o descobrimento do sentido cada vez mais profundo dessas expressões religiosas. E digo que tem que ser criadora por duas razões. Em primeiro lugar, é criadora para o mesmo hermeneuta. O esforço por decifrar a revelação presente em uma criação religiosa —rito, símbolo, mito, figura divina…— e por compreender sua função, sua significação, seu fim é um esforço que enriquece de maneira singular a consciência e a vida do investigador. É uma experiência que não conhece o historiador das literaturas, por exemplo. Captar o sentido da poesia sânscrita, ler Kalidasa é um grande descobrimento para um investigador de formação ocidental, ao qual se revela um horizonte distinto de valores estéticos. Mas tudo isto não é tão profundo, tão existencialmente profundo como a tarefa de decifrar e compreender um comportamento religioso oriental ou arcaico.
A hermenêutica é criadora em um segundo sentido, pois revela certos valores que não eram evidentes no plano da experiência imediata. Suponhamos o exemplo da árvore cósmica em Indonésia, Sibéria, na Mesopotâmia; há traços comuns aos três simbolismos, mas, evidentemente, este parentesco não era conhecido do homem mesopotâmico, indonésio ou siberiano. O trabalho hermenêutico revela as significações latentes e o suceder dos símbolos. Veja os valores que os teólogos cristãos acumularam aos valores pré-cristãos da árvore cósmica, ou do axis mundi, ou da cruz, ou também o simbolismo do batismo. A água teve sempre e em todas partes um significado de «purificação», batismal. Com o cristianismo se acrescenta a este simbolismo um novo valor, sem destruir a estrutura anterior, que, pelo contrário, completa e enriquece. Com efeito, o batismo é para o cristão um sacramento pelo fato de ser instituído por Cristo.
A hermenêutica é criadora até em outro sentido. O leitor que compreende, por exemplo, o simbolismo da árvore cósmica —e acredito que tal é o caso inclusive entre quem não se interessa de ordinário pela história das religiões— experimenta algo mais que um prazer intelectual. Faz um descobrimento importante para sua vida. Adiante, quando contemplar determinadas árvores, verá neles a expressão do mistério do ritmo cósmico. Verá o mistério da vida que se recupera e continua: o inverno, com a queda das folhas; a primavera… Isto possui uma importância muito distinta da decifração de uma inscrição grega ou romana. Um descobrimento de ordem histórica nunca é desdenhável, certamente. Mas, neste caso descobre uma certa posição do espírito no mundo, e embora não se trate de uma postura própria, nunca deixará de nos afetar. O espírito é criador graças a estes encontros. Recorde o encontro do século XIX com a pintura japonesa, ou o do século XX com a escultura e as máscaras africanas. Não se trata já de simples descobrimentos culturais, mas sim de encontros criadores.
—A tarefa hermenêutica é um trabalho de conhecimento, mas, qual é o critério da verdade? Penso, ao escutar-lhe, que se vai preparado para um trabalho de ciência «objetiva», a hermenêutica pede por si, não uns critérios «objetivos», o que nos levaria a pensar que o sujeito está ausente do que considera, a não ser, em definitivo, uns critérios de «verdade poética». Quanto conhecemos através do ato de conhecimento, trocamo-lo, ao mesmo tempo, somos trocados nós mesmos por nosso conhecimento. Hermenêutica infinita, já que, ao ler ao Eliade, interpretamo-lo, do mesmo modo que ele interpreta este ou aquele símbolo iraniano…
—Sem dúvida… Mas quando se trata desses grandes símbolos que põem em relação a vida cósmica e a existência humana, em seu ciclo de morte e renascimento —a árvore cósmica, por exemplo— há algo fundamental, que reaparecerá nas distintas culturas: um segredo do universo que é ao mesmo tempo um segredo da condição humana. E não só se revelará a solidariedade entre a condição humana e a condição cósmica, mas também o fato de que se trata, em cada caso, de seu próprio destino. Esta revelação pode afetar a minha própria vida. Um sentido fundamental, por conseguinte, um sentido com o que se irão conectando outros. Quando a árvore cósmica recebe a significação da cruz, isso não resulta evidente para um indonésio, mas se alguém lhe explica que, para os cristãos, esse símbolo significa uma regeneração, uma vida nova, o indonésio não se sentirá surpreso, mas sim achará aí algo que lhe resulta familiar. Árvore ou cruz, trata-se do mesmo mistério da vida e da ressurreição. O símbolo está sempre aberto. E quanto a minha interpretação, nunca devo esquecer que é a de um investigador de hoje. A interpretação jamais está acabada.
—Convida-nos a captar a universalidade do símbolo além da diversidade do simbolismo. Mostra-nos a abertura indefinida do símbolo e da interpretação. Entretanto, rechaça a via que quiçá conduzisse a uma espécie de relativismo, de subjetivismo e, em seguida, de niilismo, essa via que consistiria em dizer: «Sim, as coisas têm sentido, mas esse sentido não se apoia em nada que não seja quanto de mais fortuito e fugitivo há em mim…». Minha pergunta agora é esta: enlaça a experiência religiosa —e em que modo— com uma verdade trans-histórica? Que classe de «transcendência» admite? Acredita que a verdade está do lado de um Claudel e de sua atitude exegética ou do lado dos existencialistas, de um Sartre, que dizem: «O homem não pode prescindir do sentido, mas esse sentido o inventa mesmo em um céu deserto»?
—Estou certamente contra essa última interpretação: «no céu deserto»! Parece-ME que as mensagens emitidas pelos símbolos fundamentais revelam um mundo de significações que não se reduz unicamente a nossa experiência histórica e imanente. «O céu deserto…». É uma metáfora admirável para um homem moderno cujos antepassados acreditavam em um céu povoado de seres antropomórficos, os deuses. O céu, certamente, estava vazio de tais seres. Por minha parte, acredito que as religiões e as filosofias nelas inspiradas —penso nos Upanixades, em Dante, no taoísmo…— revelam-nos algo essencial que somos capazes de assimilar. Entenda-se bem que se trata de algo impossível de aprender de cor, como o último descobrimento científico ou arqueológico. O que quero dizer, e digo em meu próprio nome, não é que daí eu tire uma consequência filosófica a partir de meu trabalho como historiador das religiões. Enfim, a resposta de Sartre e dos existencialistas não ME convence: um «céu vazio»… Mais ME atrai a «gnosis de Princeton», por exemplo. Chama a atenção o fato de que os maiores matemáticos e astrônomos de nossos dias, que se formaram além em uma sociedade totalmente desacralizada, cheguem à umas conclusões científicas e até filosóficas muito próximas a certas filosofias religiosas. Chama a atenção ver como os físicos, os astrofísicos e sobretudo os especialistas da física teórica reconstroem um universo no qual Deus tem um lugar, assim como a ideia de uma cosmogonia de uma criação. Há nisso algo semelhante ao monoteísmo mosaico, mas sem antropomorfismo, algo que também nos leva para certas filosofias hindus, que esses sábios desconheciam. É um fato muito importante. A «gnosis de Princeton» parece-ME muito além de significativa pelo grande êxito e o público que atraiu o livro de Ruyer. (Mircea Eliade)