iconoclasmo

A séria crise provocada pelo iconoclasmo (séculos VIII-IX) teve múltiplas causas: políticas, sociais e teológicas. Obedecendo à interdição proclamada no Decálogo, os cristãos dos dois primeiros séculos não modelaram imagens. Mas, no Império do Oriente, essa interdição passa a ser ignorada no século III, quando uma iconografia religiosa (figuras ou cenas inspiradas nas Escrituras) começa a aparecer nos cemitérios e nas salas onde se reuniam os fiéis. Essa inovação acompanha de perto o surto do culto das relíquias. Nos séculos IV e V, as imagens se multiplicam e acentua-se a sua veneração. É ainda ao longo desses dois séculos que se tornam mais precisas a crítica e a defesa dos ícones. O principal argumento dos iconófilos era a função pedagógica — sobretudo para os analfabetos — e as virtudes santificantes das imagens. Somente à volta do final do século VI e ao longo do VII é que as imagens se tornam objeto de devoção e culto, tanto nas igrejas como nos lares. Os fiéis oravam, prosternavam-se diante dos ícones, beijavam-nos, levavam-nos para desfilar por ocasião de certas cerimônias. Durante esse período, cresce o número das imagens milagrosas — fontes de poder sobrenatural — que protegiam cidades, palácios, exércitos.

Como observa Ernst Kitzinger, essa crença no poder sobrenatural das imagens, que pressupõe uma certa continuidade entre a imagem e a pessoa que ela representa, é a característica mais importante do culto dos ícones nos séculos VI e VII. O ícone é “uma extensão, um órgão da própria divindade”.

O culto das imagens foi oficialmente proibido pelo imperador Constantino V, em 726, e declarado anátema pelo sínodo iconoclasta de Constantinopla, em 754 — o principal argumento teológico era a idolatria implícita na glorificação dos ícones. O segundo sínodo iconoclasta, o de 815, repudiava o culto das imagens em nome da cristologia, pois é impossível pintar a figura do Cristo sem subentender que se representa a natureza divina (o que é uma blasfêmia) ou sem separar as duas naturezas inseparáveis a fim de pintar somente a natureza humana (o que é uma heresia). Em contrapartida, a eucaristia representa a verdadeira “imagem” do Cristo, pois está impregnada do Espírito Santo; assim, a eucaristia, ao contrário do ícone, possui uma dimensão divina e material ao mesmo tempo42.

Quanto à teologia iconófila, a mais sistemática foi elaborada por João Damasceno (675-749) e por Teodoro Estudita (759-826). Arrimados no Pseudo-Areopagita, sublinham os dois autores a continuidade entre o espiritual e o material. “Como podeis, vós que sois visíveis”, escreve João Damasceno, “adorar as coisas que são invisíveis?” O “espiritualismo” excessivo dos iconoclastas coloca-os na mesma categoria dos antigos gnósticos que pretendiam que o corpo de Cristo não era físico, mas celeste. Em consequência da encarnação, a figura de Deus tornou-se visível, anulando assim a proibição vetero-testamentária de representar o divino. Por conseguinte, aqueles que negam que Cristo pode ser representado por um ícone negam implicitamente a realidade da Encarnação. Entretanto, esclarecem nossos dois autores que a imagem não é idêntica em essência e em substância ao seu modelo. A imagem constitui uma representação que, mesmo refletindo o modelo, mantém-se distinta dele. Consequentemente, os iconoclastas são culpados de blasfêmia quando consideram a eucaristia como uma imagem, pois, sendo em essência e em substância idêntica ao Cristo, a eucaristia é o Cristo, e não a sua imagem.

Com relação aos ícones dos santos, escreve João Damasceno: “Enquanto viviam, os santos estavam plenos do Espírito Santo, e depois de mortos a graça do Espírito Santo está sempre próxima às suas almas, às suas sepulturas, às suas santas imagens”. Os ícones, sem dúvida, não devem ser adorados da mesma forma como se adora a Deus. Pertencem, porém, à mesma categoria de lugares e objetos santificados pela presença de Jesus Cristo — como, por exemplo, Nazaré, o Gólgota, o lenho da Cruz. Esses lugares e objetos tornaram-se “recipientes da energia divina”, porque é através deles que Deus opera a nossa salvação. Em nossos dias, os ícones tomam o lugar dos milagres e dos outros atos de Jesus Cristo que os seus discípulos tiveram o privilégio de ver e admirar46.

Em síntese, tal como as relíquias tornavam possível a comunicação entre o Céu e a Terra, os ícones reatualizavam o prodigioso illud tempus, quando Cristo, a Virgem e os Santos Apóstolos viviam entre os homens. Os ícones eram, se não semelhantes em poder às relíquias, pelo menos mais facilmente acessíveis ao fiéis: podiam ser encontrados nas mais modestas igrejas e capelas, e nos lares. Além disso, a sua. contemplação permitia o acesso a um universo de símbolos. Por conseguinte, as imagens eram suscetíveis de completar e aprofundar a instrução religiosa dos analfabetos. (Com efeito, esse papel foi desempenhado pela iconografia em todas as populações rurais da Europa oriental.)

À parte as razões políticas e sociais, a febre iconoclasta não obtém êxito. Por um lado, os iconoclastas ignoravam ou rejeitavam a função simbólica das imagens sacras; por outro lado, muitos iconófilos usavam o culto dos ícones em seu próprio benefício ou para assegurar o prestígio, a preponderância e a riqueza de certas instituições eclesiásticas. (Eliade)

Mircea Eliade