(…) convém entendermo-nos quanto ao sentido que se deve dar aqui à palavra “metafísica”, tanto mais que tenho tido frequentemente a ocasião de constatar que nem todo mundo a compreende da mesma maneira. Penso que o melhor a fazer com as palavras que podem dar margem a algum equívoco é restaurar, tanto quanto possível, sua significação primária e etimológica. Ora, de acordo com sua composição, a palavra “metafísica” significa literalmente “além da física”, tomando-se a palavra “física” na acepção que ela sempre tinha para os antigos, que era a de “ciência da natureza” em toda a sua generalidade. Física é o estudo de tudo aquilo que pertence ao domínio da natureza; o que diz respeito à metafísica é aquilo que está para além da natureza. Como então podem alguns alegar que o conhecimento metafísico é um conhecimento natural, seja quanto ao seu objeto, seja quanto às faculdades pelas quais esse conhecimento é obtido? Há nisto um verdadeiro contrassenso, uma contradição nos próprios termos; e entretanto, o que é mais assombroso, acontece que essa confusão é cometida por aqueles mesmos que deveriam ter conservado alguma ideia da verdadeira metafísica e saber distingui-la mais nitidamente da pseudo-metafísica dos filósofos modernos.
Mas, dirão, se essa palavra “metafísica” dá margem a tais confusões, não valeria mais renunciar ao seu emprego e substituí-la por uma outra que apresentasse menos inconvenientes? Na verdade isso seria desaconselhável, já que, por sua formação, essa palavra convém perfeitamente àquilo de que se trata — e de resto não é possível fazê-lo, porque as línguas ocidentais não possuem nenhum outro termo que seja tão bem adaptado a esse uso. Empregar pura e simplesmente a palavra “conhecimento”, como se faz na Índia, — uma vez que se trata, com efeito, do conhecimento por excelência, o único absolutamente digno desse nome — é algo que não se deve nem pensar; pois isso seria ainda menos claro para os ocidentais, que, em matéria de conhecimento, estão habituados a não ter em vista nada fora do conhecimento científico e racional. — E, afinal, será necessário preocuparmo-nos tanto com o abuso que se fez de uma palavra? Se devêssemos rejeitar todas as palavras que estão nesse caso, quantas restariam ainda à nossa disposição? Não bastará tomarmos as precauções devidas para afastar os enganos e os mal-entendidos? Não temos pela palavra “metafísica” um apego maior do que por qualquer outra; mas, enquanto não nos houverem proposto um melhor termo para substituí-lo, continuaremos a nos servir dele, como o temos feito até agora.
Infelizmente, há pessoas que têm a pretensão de “julgar” aquilo que ignoram, e que, por darem o nome de “metafísica” a um conhecimento puramente humano e racional (o que, para nós, não é senão ciência ou filosofia), imaginam que a metafísica oriental não seja nada mais do que isso, nem nada de diferente disso, — e daí tiram logicamente a conclusão de que essa metafísica não pode conduzir realmente a tais ou quais resultados Todavia, é a esses resultados que ela conduz efetivamente, mas por ser uma coisa totalmente diversa daquilo que supõem; tudo aquilo que eles têm em vista não possui verdadeiramente nada de metafísico, desde que não é mais do que um conhecimento de ordem natural, um saber profano e exterior; não é de nada disso que desejamos falar.
Tomaríamos, então, “metafísica” como sinônimo de “sobrenatural”? Aceitaríamos de bom grado tal assimilação, de vez que, enquanto não ultrapassamos a natureza, isto é, o mundo manifesto em toda a sua extensão (e não apenas o mundo sensível, que não é, dele, senão um elemento infinitesimal), estamos ainda no domínio da física; o que é metafísico, como dissemos, é aquilo que está além e acima da natureza, é portanto, propriamente o “sobrenatural”.
Mas, sem dúvida, farão aqui uma objeção: será possível ultrapassar assim a natureza? Não hesitaremos em responder de maneira bastante nítida: não somente isso é possível, mas isso é. Não passa de uma afirmação, dirão ainda: que provas se poderia oferecer disso? É verdadeiramente estranho que alguém peça provas da possibilidade de um conhecimento, em vez de tentar averiguá-lo por si mesmo mediante o trabalho necessário para adquiri-lo. Para quem possui tal conhecimento, que interesse e que valor podem ter todas essas discussões? O fato de substituir a “teoria do conhecimento” ao conhecimento mesmo é talvez a mais bela declaração de impotência da filosofia moderna.
Existe, aliás, com toda certeza, alguma coisa de incomunicável; ninguém pode atingir realmente um conhecimento qualquer senão através de um esforço estritamente pessoal, e tudo o que um outro pode fazer é mostrar-lhe a ocasião e os meios de lá chegar. Eis porque, na ordem puramente intelectual, seria vão pretender impor qualquer convicção; a melhor argumentação não poderia, no caso, substituir o conhecimento direto e efetivo.
Agora: pode-se definir a metafísica, tal como a entendemos? Não, porque definir é sempre limitar, e aquilo de que se trata é, em si, verdadeiramente e absolutamente ilimitado, portanto não poderia deixar-se encerrar em nenhuma fórmula e em nenhum sistema. Pode-se caracterizar a metafísica de uma certa maneira, por exemplo dizendo que ela é o conhecimento dos princípios universais; mas isto não é propriamente uma definição e, de resto, não pode dar senão uma ideia bastante vaga do que seja metafísica. Acrescentaríamos alguma coisa se disséssemos que o domínio dos princípios se estende muito mais longe do que pensaram certos ocidentais, — que entretanto fizeram metafísica, mas de uma maneira parcial e incompleta. Assim , quando Aristóteles encarava a metafísica como o conhecimento do ser enquanto ser, ele a identificava com a ontologia, isto é, tomava a parte pelo todo. Para a metafísica oriental, o ser puro não é o primeiro nem o mais universal dos princípios, pois ele é já uma determinação; é preciso portanto ir além do ser, e aí está realmente aquilo que mais importa. Eis por que, em toda concepção verdadeiramente metafísica, deve-se sempre reservar a parte do inexprimível; e, com efeito, tudo o que se pode exprimir não é literalmente nada em vista daquilo que ultrapassa toda expressão, tal como o finito, qualquer que seja a sua grandeza, é nulo em face do infinito. Podemos sugerir, muito mais do que exprimir, e este é, em suma, o papel que desempenham aqui as formas exteriores; todas essas formas, trate-se de palavras ou de símbolos quaisquer, não constituem mais do que um suporte, um ponto de apoio para nos elevarmos a possibilidades de concepção que as ultrapassem incomparavelmente; voltaremos a este assunto logo mais. (RG)