W. Lloyd Warner escreve em seu estudo sobre as diferentes crises de vida de um homem australiano:
O indivíduo antes do nascimento é puramente espiritual; torna-se completamente profano ou não espiritual no primeiro período de sua vida, quando é colocado socialmente junto às mulheres; gradualmente torna-se mais e mais ritualizado e sagrado à medida que envelhece e aproxima-se da morte, quando então torna-se mais uma vez completamente espiritual e sagrado.
Qualquer que seja a concepção de morte, a maior parte de nossos contemporâneos não irá concordar com a afirmação de que a morte é um modo de ser “completamente espiritual e sagrado”. Para a maioria dos não religiosos, a morte perdeu qualquer significado religioso mesmo antes de a vida haver perdido o seu. Para alguns, a aceitação da morte como um lugar comum antecipou a aceitação do absurdo e ausência de sentido da existência. Isso é o que um psicanalista britânico anônimo queria dizer, quando afirmou: “Nascemos loucos; então adquirimos um sentido ético e nos tornamos estúpidos e infelizes; então morremos.”
Essa última frase – “então morremos” – exprime admiravelmente a concepção que o homem ocidental tem de seu destino, embora seja uma concepção um pouco diferente daquela encontrada em muitas outras culturas. Nessas, os homens também lutam para compreender o mistério da morte e alcançar o seu significado. Não conhecemos nenhuma criatura que não conte com a certeza da morte. Contudo, essa afirmação Categórica da mortalidade humana torna-se apenas um lugar comum quando isolada de seu contexto mitológico. Uma conclusão coerente e dotada de sentido para aquela afirmação seria e consequentemente morremos”. Com efeito, para as culturas tradicionais, a existência da morte como fato existencial é atribuído a um acidente infeliz que ocorreu nos primórdios da humanidade. Os ancestrais míticos desconheciam a morte, tudo foi consequência de um acaso ocorrido ainda nos tempos primordiais. Quando é dado ao homem o conhecimento desse primeiro fato, ele compreende a razão de sua própria morte. Quaisquer que sejam as variações dos detalhes dessa primeira morte, o próprio mito basta para explicar o fato em si.
Como é bem sabido, poucos mitos explicam a existência da morte como consequência de uma transgressão pelo homem de um mandamento divino. São um pouco mais comuns os mitos que atribuem a mortalidade a um ato cruel e arbitrário de um ser demoníaco. Essa é a explicação encontrada, por exemplo, entre as tribos australianas e em mitologias de povos da Ásia, Sibéria e América do Norte. De acordo com essas mitologias, a morte foi introduzida no mundo por um adversário do Criador.4 As sociedades arcaicas, ao contrário, explicam a morte como um acidente absurdo e/ou consequência de uma opção tola feita pelos ancestrais míticos. O leitor pode lembrar-se das numerosas histórias do tipo dos “Dois Mensageiros” ou “O Recado que Não Chegou”, comuns principalmente na África.5 Segundo essas histórias, Deus enviou o camaleão aos ancestrais, com o recado de que eles seriam imortais, e enviou o lagarto, com a mensagem de que morreriam. Porém, o camaleão parou para descansar no meio do caminho e o lagarto chegou primeiro. Assim que ele entregasse sua mensagem, a morte entrou no mundo.
Dificilmente encontraremos uma explicação mais precisa do absurdo da morte. Tem-se a impressão de estarmos lendo um existencialista francês. Na realidade, a passagem do ser para o não ser é tão desalentadoramente incompreensível que se aceita melhor uma “explicação” ridícula porque é ridiculamente absurda. É óbvio que tais mitos pressupõem uma concepção teológica do Verbo: Deus simplesmente não poderia mudar seu veredito uma vez que a emissão de suas palavras determinava a realidade.
De maneira igualmente dramática, são os mitos que relacionam o aparecimento da morte a uma ação estúpida dos antepassados míticos. Por exemplo, um mito melanésio conta que, à medida que envelheciam, os primeiros homens perdiam sua pele como cobras, voltando à sua juventude. Porém, uma vez, uma mulher velha, quando chegou em casa rejuvenescida, não foi reconhecida pelo próprio filho. Para acalmá-lo, a mulher vestiu novamente a pele velha e, a partir de então, os homens tornaram-se mortais.6 Como último exemplo, deixem-ME contar-lhes o belo mito indonésio da Pedra e da Banana. No começo, o céu estava muito mais próximo da terra e o Criador costumava fazer descer suas dádivas aos homens através de uma corda. Um dia, ele desceu uma pedra, e os ancestrais a rejeitaram, gritando: “O que temos a ver com essa pedra? Dê-nos outra coisa.” Deus concordou; algum tempo depois, ele enviou-lhes uma banana, que foi alegremente aceita. Então, os ancestrais ouviram uma voz que lhes dizia: “Uma vez que escolhestes a banana, vossa vida será como a dela. Quando a bananeira dá cachos, a árvore-mãe morre; assim, vós morrereis e vossos filhos tomarão vosso lugar. Se tivésseis escolhido a pedra, vossa vida seria imutável e imortal como a dela.”
Esse mito indonésio ilustra de maneira adequada a dialética misteriosa entre a vida e a morte. A pedra simboliza a indestrutibilidade e a invulnerabilidade e, consequentemente. a continuidade infinita do que é imutável. Contudo, a pedra é também um símbolo de obscuridade, inércia e imobilidade, enquanto a vida, em geral, e a condição humana, em particular, são caracterizadas pela criatividade e liberdade. Para o homem, em última análise, isto significa criatividade e liberdade espirituais. Dessa forma, a morte torna-se parte integrante da condição humana; porque, como veremos agora, é a experiência da morte que torna inteligível a noção de espírito e de seres espirituais. Em suma, qualquer que tenha sido a causa da primeira morte, ela fez o homem conscientizar-se de sua condição específica, deu-lhe sua própria humanidade.
O velho Henry James, pai de William e Henry. escreveu certa vez que “o primeiro e o mais valioso serviço que Eva presta a Adão é lançá-lo fora do Paraíso” Trata-se, obviamente, de uma visão moderna ocidental, da primeira grande tragédia, a perda do paraíso e da imortalidade. Não existe cultura tradicional em que a morte seja considerada uma bênção. Pelo contrário, entre as sociedades arcaicas, acredita-se ainda na possibilidade de eternidade do homem, ou seja, a convicção de que o homem, não fosse a interferência de um agente hostil, nunca morreria. Em outras palavras, não se aceita a morte como um acontecimento natural. Da mesma forma que os ancestrais perderam sua imortalidade através de um acidente ou artifício do demônio, também o homem de hoje morre vítima de agentes mágicos, espíritos ou outros agressores sobrenaturais.
Contudo, em muitas sociedades arcaicas, como o mito da Pedra e da Banana sugere tão graciosamente, tem-se consciência da morte como parte integrante da vida. Em suma, isso quer dizer que a morte modifica o status ontológico do homem. A separação da alma e do corpo inaugura um novo modo de ser. A partir dessa concepção, o homem é reduzido a uma existência espiritual; torna-se um espírito, uma “alma”. (Eliade)