É importante compreender que a cosmização dos territórios desconhecidos é sempre uma consagração: organizando um espaço, reitera-se a obra exemplar dos deuses. A relação íntima entre cosmização e consagração atesta-se já aos níveis elementares de cultura, por exemplo entre os nômades australianos cuja economia-se encontra ainda no estágio da colheita e da caça miúda. Segundo as tradições dos achilpa, uma tribo Arunta, o Ser divino Numbakula “cosmizou”, nos tempos míticos, o futuro território da tribo, criou seu Antepassado e fundou suas instituições. Do tronco de uma árvore da goma, Numbakula moldou o poste sagrado (kauwa auwa) e, depois de o ter ungido com sangue, trepou por ele e desapareceu no Céu. Esse poste representa um eixo cósmico, pois foi à volta dele que o território-se tornou habitável, transformou-se num “mundo”. Daí a importância do papel ritual do poste sagrado: durante suas peregrinações, os achilpa transportam no sempre consigo e escolhem a direção que devem seguir conforme a inclinação do poste. Isto permite que os achilpa, embora-se desloquem continuamente, estejam sempre no “seu mundo” e, ao mesmo tempo, em comunicação com o Céu, onde Numbakula desapareceu. Se o poste se quebra, é a catástrofe; é de certa maneira o “fim do Mundo”, a regressão ao Caos. Contam Spencer e Gillen que, tendo-se quebrado uma vez o poste sagrado, toda a tribo foi tomada de angústia; seus membros vaguearam durante algum tempo e finalmente sentaram-se no chão e deixaram-se morrer.
Esse exemplo ilustra admiravelmente, e a um só tempo, a função cosmológica do poste ritual e seu papel soteriológico: de um lado, o kauwa auwa reproduz o poste utilizado por Numbakula para cosmizar o mundo; de outro, é graças ao poste que os achilpa acreditam poder comunicar-se com o domínio celeste. Ora, a existência humana só é possível graças a essa comunicação permanente com o Céu. O “mundo” dos achilpa só-se torna realmente o mundo deles na medida em que reproduz o Cosmos organizado e santificado por Numbakula. Não-se pode viver sem uma “abertura” para o transcendente; em outras palavras, não-se pode viver no “Caos”. Uma vez perdido o contato com o transcendente, a existência no mundo já não é possível– e os achilpa deixam-se morrer.
Instalar-se num território equivale, em última instância, a consagrá-lo: Quando a instalação já não é provisória, como nos nômades, mas permanente, como é o caso dos sedentários, implica uma decisão vital que compromete a existência de toda a comunidade. “Situar-se” num lugar, organizá-lo, habitá-lo – são ações que pressupõem uma escolha existencial: a escolha do Universo que-se está pronto a assumir ao “criá-lo”. Ora, esse “Universo” é sempre a réplica do Universo exemplar criado e habitado pelos deuses: participa, portanto, da santidade da obra dos deuses.
O poste sagrado dos achilpa “sustenta” o mundo deles e assegura a comunicação com o Céu. Temos aqui o protótipo de uma imagem cosmológica que teve uma grande difusão: a dos pilares cósmicos que sustentam o Céu e ao mesmo tempo abrem a via para o mundo dos deuses. Até sua cristianização, os celtas e os germanos conservavam ainda o culto desses pilares sagrados. O Chronicum laurissense breve, escrito por volta de 800, conta que Carlos Magno, por ocasião de uma de suas guerras contra os saxões (772), mandou demolir, na cidade de Eresburg, o templo e o madeiro sagrado do “famoso Irmensûl” daquele povo. Rodolfo de Fulda (c. 860) enfatiza que essa famosa coluna é a “coluna do Universo, sustentando quase todas as coisas” (universalis columna quasi sustinens omnia). Encontra-se a mesma imagem cosmológica entre os romanos (Horácio, Odes, 111, 3), na Índia antiga – onde-se fala do skambha, o pilar cósmico (Rig Veda, 1, 105; X, 89, 4 etc.) – e também entre os habitantes das ilhas Canárias e em culturas tão afastadas como as do kwakiutl (Colúmbia britânica) e a dos Nad’a de Flores (Indonésia). Os kwakiutl acreditam que um poste de cobre atravessa os três níveis cósmicos (o mundo de baixo, a Terra, o Céu): no ponto onde o poste entra no Céu encontra-se a “Porta do Mundo do alto”. A imagem visível desse pilar cósmico é, no Céu, a Via Láctea. Mas essa obra dos deuses que é o Universo é retomada e imitada pelos homens à escala deles. O Axis mundi que-se vê no Céu, sob a forma da Via Láctea, tornou-se presente na casa cultual sob a forma de um poste sagrado. É um tronco de cedro de dez a doze metros de comprimento, do qual mais da metade sai pelo telhado da casa cultual. Esse pilar desempenha um papel capital nas cerimônias: é ele que confere uma estrutura cósmica à casa. Nas canções rituais, a casa é chamada de “nosso mundo”, e os candidatos à iniciação, que habitam nela, proclamam: “Estou no Centro do Mundo… Estou perto do pilar do mundo” etc.– a mesma assimilação do pilar cósmico ao poste sagrado, e da casa cultual ao Universo, entre os Nad’a de Flores. O poste de sacrifício chama-se “Poste do Céu”, e acredita-se que o Céu seja sustentado por ele. (Eliade)