porta

A porta (dwara) e a boca (mukha) são, em certo aspecto, símbolos equivalentes. (Guénon)


A porta simboliza o local de passagem entre dois estados, entre dois mundos, entre o conhecido e o desconhecido, a luz e as trevas, o tesouro e a pobreza extrema. A porta se abre sobre um mistério. Mas ela tem um valor dinâmico, psicológico; pois não somente indica uma passagem, mas convida a atravessá-la. É o convite à viagem rumo a um além…

A passagem à qual ela convida é, na maioria das vezes, na acepção simbólica, do domínio profano ao domínio sagrado. Assim são os portais das catedrais, os torona hindus, as portas dos templos ou das cidades khmers, os torii japoneses etc.

As cidades chinesas tinham quatro portas cardeais. Por elas eram expulsas as más influências, acolhidas as boas, recebidos os hóspedes, estendida às quatro regiões do império a Virtude Imperial, reguladas as horas do dia e as estações. As quatro portas cardeais de Angkor-Thom repetem nos quatro orientes a efígie radiante de Lokeshvara, soberano do universo. Mas elas permitem o acesso, das quatro direções, a esse centro do mundo. Os portais das igrejas, os pórticos dos templos são a abertura da peregrinação sagrada, que conduz até a cella, até o Santo dos Santos, local da Presença real da Divindade. Eles resumem o simbolismo do próprio santuário, que é a porta do Céu. As portas dos templos são muitas vezes guarnecidas de guardiães ferozes (animais fabulosos, dvarapala nos templos da Asia e até nas mandalas tântricas, guardas armados nas lojas das sociedades secretas). Trata-se ao mesmo tempo de proibir a entrada no recinto sagrado de forças impuras, maléficas, e de proteger o acesso dos aspirantes que são dele dignos, t, para estes a entrada na cidade pelas porias (Apocalipse. 22, 14); para os outros, a rejeição nas trevas exteriores.

O simbolismo dos guardiães está claramente ligado à iniciação (= entrada), que pode ser interpretada como a travessia da porta. Jano, deus latino da iniciação aos mistérios, detinha as chaves das portas solsticiais. isto é, das fases ascendente e descendente do ciclo anual. Trata-se, respectivamente, da porta dos deuses e da porta dos homens, que dão acesso às duas vias das quais |ano (como Ganesha, na Índia) é o senhor: pitri-yana e deva-yana, diz a tradição hindu, vias dos ancestrais e dos deuses. As duas portas são ainda Janua inferni e Janua coeli, portas dos infernos e dos céus.

A passagem da terra ao céu se dá, como dissemos (caverna, domo) pela porta do sol, que simboliza a saída do cosmo, o além das limitações da condição individual, f, o buraco do domo, na tenda, por onde passa o Eixo do mundo, é também o cimo da

cabeça, em todo caso, a porta estreita que dá acesso ao Reino dos Céus. É o que exprime ainda a passagem do fio ou do camelo pelo buraco da agulha.

Outra figura da porta: o torana hindu, associado ao kala, o glutão. A porta é aqui a goela do monstro, que representa a passagem da vida à morte, mas também da morte à libertação; é a dupla corrente cíclica, expansão e integração, kalpa e pralaya. Na arte khmer, o kala vomita dois makara divergentes, os quais se desenvolvem e vomitam, por sua vez, literalmente, a verga da porta, que assim se aparenta com o arco-íris: afirmação indireta da passagem da terra à morada divina.

A manifestação cósmica da qual acabamos de falar se exprime ainda na China através do símbolo da porta: segundo o Hi-tse, o trigrama kuen (princípio passivo, Terra) é a porta fechada; o trigrama k’ien (princípio ativo, Céu) é h porta que se abre, a manifestação. A abertura e o fechamento alternativos da porta exprimem, então, o ritmo do universo. É também a alternância do yang e do yin; mas as portas aparecem, neste caso, mais equinociais que solsticiais (o yang sal no signo tch’en que corresponde à primavera). Dentro da mesma sequência de ideias, a abertura e o fechamento da porta do Céu (como no Tao, 6 e 10) estão em relação com o ritmo respiratório, sabendo-se que este é o homólogo microcósmico do primeiro. O fechamento das portas também é, à maneira taoista (Tao, 32), a retenção do sopro e a aniquilação das percepções sensíveis.

Observando o vaivém da porta e a imutabilidade do eixo, o Mestre Eckhart faz da primeira o símbolo do homem exterior, do segundo, o do homem interior, não atingido, em sua posição axial, central, pelo movimento de fora.

Nas tradições judaicas e cristãs, a importância da porta é imensa, porquanto é ela que dá acesso à revelação; sobre ela vêm se refletir as harmonias do universo. As portas do Antigo Testamento e do Apocalipse, ou seja, o Cristo em sua majestade e o último julgamento, acolhem o peregrino e os fiéis. Suger dizia aos visitantes de Saint-Denis que convinha admirar a beleza da obra realizada, e não a matéria de que havia sido feita a porta. Ele acrescentava que a beleza que ilumina as almas deve dirigi-las no sentido da luz, cuja porta verdadeira é Cristo (Christus Janua vera).

Se Cristo em glória é representado no alto dos frontispícios das catedrais, é porque ele próprio é, de acordo com o mistério da Redenção, a poria pela qual se chega ao Reino dos Céus: Eu sou a poria, quem entrar por Mim, será salvo (João, 10, 9). Cristo, escreve Clemente de Alexandria, citando um texto gnóstico, é a poria da justiça, pois está dito no Salmo 118 (19-10): Abri-ME as portas da justiça, eu entrarei, eu renderei graças a Jeová! É aqui a porta de Jeová, os justos entrarão.

O símbolo da porta é frequentemente retomado pelos autores romanos. Jerusalém tem portas, escreve Hugues de Fouilloy, pelas quais nós entramos na igreja e penetramos na vida eterna. Conta-se, diz ele, que as portas de Jerusalém se ligam imprudentemente à terra quando os prelados da Igreja se deleitam no amor das coisas terrestres, e elas se voltam para os céus, quando eles buscam as coisas celestes. A porta do templo conduz à vida eterna. Assim, Guillaume de Salnt-Thierry pôde escrever: Ó vós que dissestes: Eu sou a porta. . . , mostrai-nos com clareza de que morada sois a porta, a que momento e quem são aqueles aos quais vós a abris.. A casa da qual sois a porta é. . . o céu que o vosso Pai habita. A Virgem também é chamada de porta do céu. Nas litanias da Imaculada Conceição, a Igreja dá à Virgem os epítetos de Porta fechada de Ezequiel, Porta do Oriente e Porta do Céu. Maria é, às vezes, representada na iconografia medieval sob a forma de uma porta fechada (v. rodapé da face A dos assentos do coro de Amiens).

Na arquitetura romana, o frontispício desempenha um papel preponderante. Ele apresenta uma espécie de síntese, ela própria suficiente para oferecer um ensinamento. T. Burckhardt insistiu na importância da combinação da porta e do nicho. No nicho, ele acredita descobrir a imagem reduzida da caverna do mundo. Esta corresponde, segundo ele, ao coro da igreja e se torna o lugar da epifania divina, pois ela coincide com o simbolismo da porta celeste que designa um movimento duplo: o de introduzir as almas no reino de Deus, o que prefigura um movimento de ascendência, e o de deixar cair sobre elas as mensagens divinas. Abrir uma porta e atravessá-la é mudar de nível, de meio, de centro, de vida.

A porta tem também uma significação escatológica. A porta como local de passagem, e, particularmente, de chegada, torna-se naturalmente o símbolo da iminência do acesso e da possibilidade de acesso a uma realidade superior (ou, inversamente, da efusão de dons celestes sobre a terra).

É assim que o retorno de Cristo é anunciado e descrito como o de um viajante que bate à porta: o Filho do Homem está à poria (Marcos, 13, 29). As vezes, o simbolismo é muito mais rico. O Cristo do Apocalipse (3, 20) diz: Eis-ME, estou à porta e bato. Se alguma pessoa ouvir a minha voz e abrir a poria, entrarei e farei a Ceia com ela e ela a fará comigo. A imagem é tomada de empréstimo ao Cântico dos Cânticos (5, 2), cujo simbolismo pascal é afirmado pelo judaísmo. Tradições judaicas esperam na Páscoa a libertação final e a vinda do Messias (v. o poema das Quatro noites no Targum de Êxodo, 12, 42). Elas frequentemente exprimem essa espera com o auxilio do motivo da porta (Flávio Josefo. Antiguidades judaicas, 18, 29); abriam-se as portas do Templo no meio da noite de Páscoa (Josefo, Guerra dos judeus, 6, 290 s); signos miraculosos eram produzidos na ocasião de uma festa de Páscoa – em particular, a porta do Templo se abria sozinha, fazendo com que o povo daí concluísse que Deus havia aberto a porta da felicidade, isto é, que o processo final e messiânico havia começado. Herdeiro da tradição, o cristianismo primitivo espera o retorno de Cristo durante a noite de Páscoa e celebra a sua vigília aguardando as batidas que o ressuscitado vai dar à porta do mundo.

Falar-se-á do mesmo modo de portas dos céus (Gênesis, 28, 17; Salmos, 78, 23) que Deus abre para se manifestar (Apocalipse, 4, 1) e espalhar seus benefícios sobre os homens (Malaquias, 3, 10). Inversamente, a abertura das portas (da nova Jerusalém escatológica, Isaías, 60, 11, do Templo ideal…) simboliza o livre acesso do povo santo à graça de Deus.

As portas da morte (Isaías. 38, 10), dos infernos ou da morada dos mortos (Mateus, 16, 18) simbolizam o poder notável desse abismo do qual não se pode sair, mas sobre o qual Cristo se proclama vencedor. Ele delem as suas chaves (Apocalipse, 3, 7).

Nesse momento, se compreende melhor que a porta seja tida como uma designação simbólica do próprio Cristo (João, 10, 1-10): Ele é a única porta pela qual as ovelhas podem ter acesso ao curral, isto é, ao reino dos eleitos.

A porta esculpida de um santuário senufo, na aldeia Towara na África, equivale também a um ensinamento em imagens, e a imagem deve ser compreendida, não pelo que ela representa para os olhos, mas pelo que ela simboliza para o espírito. Essa porta é o símbolo de uma cosmogonia. Um disco com um círculo em torno de sl aparece no centro da porta, e em volta dele se destacam, em um vasto quadrado, figuras de seres humanos e de animais, sendo que as de cima estão de cabeça para baixo. Era cima desse quadrado, como em um relevo linear, erguem-se seis personagens, um dos quais, um cavaleiro; debaixo do quadrado, um homem em marcha, um leopardo, um rinoceronte, um pássaro com as asas estendidas, uma serpente pronta para o bote. Eis a interpretação que dá a isso Jean Laude (PP. 307-309); nós juntamos a nossa entre parênteses: A porta que separa o lugar sagrado (o interior do santuário) do mundo profano faria visível para o lado dos vivos (do exterior) uma exposição da criação, uma cosmogonia. O disco central representa aparentemente o umbigo do mundo (a fonte e o pivô da criação). Os personagens representados seriam imagens de gênios (intermediários entre o mundo criado e as forças criadoras, invisíveis). .. As dimensões respectivas dos seres e das coisas representadas não são respeitadas (a cabeça do cavaleiro é maior que o cavalo: as proporções são relativas à importância, não física, mas hierárquica, dos seres)… O universo é aqui concebido como se tendo desenvolvido a partir de um núcleo central em expansão de onde os seres e as coisas emanam irradiando-se. (A parte superior dos seres, a cabeça, está mais próxima do círculo, de onde vem a vida; isso explicaria a posição invertida ou inclinada de certas figuras; não se trataria nem de projeção sobre um plano, nem de simetria, nem de perspectiva, mas de formas e de situações simbólicas.).

A porta evoca também uma ideia de transcendência, acessível ou proibida, dependendo de se a porta estiver aberta ou fechada, se tiver sido transposta ou simplesmente vista. Com uma acuidade muito original, Michel Cournot critica assim um filme de Robert Bresson: … as criaturas de Baltasar passam a maior parte de seu tempo a abrir e fechar portas, a passar e tornar a passar por portas. Basta ser um pouquinho sensível à transcendência para ver que uma porta não é simplesmente uma abertura feita em uma parede ou um conjunto de peças de madeira capazes de girar nos encaixes. Dependendo de se ela estiver fechada, aberta, trancada a chave, batendo, a porta é, sem modificar em nada a sua natureza, presença, ou ausência, apelo ou defesa, perspectiva ou plano cego, inocência ou erro. Nós olhamos uma porta fechada: um ser que ainda se encontra fora do campo visual se aproxima; mal tivemos tempo de ver sua sombra sobre a porta e já ele a empurrou e se eclipsou por trás dela: uma presença, um ato, uma intenção são assim representados sem exibição profana pela cinematografia simples de uma superfície pura que se movimentou. No estado de espírito bressoniano, universal se diz ecumênico; não há Imagem mais ecumênica da vida que a de uma porta que é aberta e outra vez fechada: a porta também permite significar sem degradar (Le Nouvel Observateur, 1966, n.° 80, p. 40).

A porta se presta a diversas interpretações esotéricas. Para os alquimistas e os filósofos, segundo dom Pernety (396), ela significa a mesma coisa que a chave, entrada ou meio de operar em todo o curso da obra. A porta é a comunicação do instrumento oculto, do utensílio secreto.

Para os franco-maçons, a Porta do Templo é colocada entre as duas Colunas e se abre para uma fachada de parede encimada por um frontão triangular: sobre o frontão, um compasso, E com as pontas para o alto, se dirige ao Céu.

A Porta do Templo deve ser muito baixa. O profano que penetra no Templo deve se curvar, não em sinal de humildade, mas para marcar a dificuldade da passagem do mundo profano ao plano da iniciação. .. Esse gesto pode também lembrar a ele que, morto na sua vida profana, ele renasce para uma vida nova, à qual chega de uma maneira semelhante d da criança que vem ao mundo. Plantageneta observa também que: a Porta do Templo é designada pelo nome de Porta do Ocidente, o que nos deve lembrar que é no seu umbral que o sol se põe, is/o é, que a Luz se apaga. Além reinam as trevas, o mundo profano. (DS)

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