Um rito pode ser definido como uma série de gestos, respondendo a necessidades essenciais, gestos que devem ser executados de acordo com uma certa eurritmia. Segundo sua etimologia sanscrítica, a palavra designa aquilo que se realiza de acordo com a ordem (rita). Sua origem se perde na noite dos tempos e permanece desconhecida até mesmo daqueles que o praticam, ainda que dela tenham guardado uma memória hereditária.
Nada há de gratuito em tais cerimônias. 0 conjunto destes gestos é um processo de realização composto de cânticos, músicas, palavras, reproduzindo atitudes naturais que de início correspondiam a reflexos provocados espontaneamente em circunstâncias análogas, atendendo às mesmas necessidades. São gestos elementares que realizamos todos os dias e que acompanham nossa maneira de viver, de andar, de vestir, de manifestar nossa benevolência ou nossa hostilidade.
Os ritos do banho, da refeição, do amor, da morte, santificam os momentos, importantes da existência, o nascimento de uma criança, as abluções do batismo, o casamento, que exigia o rapto da noiva, os funerais, com o enterro do defunto como uma semente destinada a renascer, enfim o banquete, que complementa toda verdadeira cerimônia e que é santificado pelo simbolismo nutritivo da Eucaristia.
Todos os ofícios têm o seu ritual. A agricultura antiga obedecia a regras religiosas, assim como a arquitetura, notadamente a dos templos, que disso conservaram vestígios de orientação e consagração, ou a metalurgia, da qual vimos o simbolismo transformar-se em alquimia.
Na aurora dos tempos arcaicos não havia diferença entre um gesto profano e um rito sagrado, já que não existia o domínio do profano. Numa civilização tradicional, toda função era sacerdócio. Nada ficava excluído do sagrado e, por conseguinte, nada era impuro. Essa noção de impureza, como a de um pseudo-rito “negativo”, não passa de uma não-interpretação do caráter sempre “positivo” dos ritos autênticos e um desconhecimento de sua ambivalência essencial.
Toda ocupação cotidiana era ritual. Nós mesmos, homens de hoje, quando retiramos o chapéu por respeito, quando inclinamos a cabeça com deferência, quando estendemos a mão por cortesia, repetimos um rito antigamente sagrado e tornado profano, um símbolo transformado em simples hábito, embora seja muitas vezes perigoso para a nossa segurança, ou simplesmente para a nossa reputação, o não executá-lo. Como dizia um texto confuciano, os ritos permitiam unir as vontades, orientar as ações, harmonizar as almas e atingir um equilíbrio geral de forças, tanto físicas como sociais. Isso pode levar-nos a considerar Confúcio um Pitágoras chinês. Na China antiga, era crime modificar um rito por pouco que fosse, e punido como tal. Essa harmonização coletiva não passava de uma aplicação da lei das correspondências sutis que reúne os diferentes níveis do ser humano. Se pedirmos à ciência a legitimação desses atos, ela mostrará facilmente que sua importância depende de relação psicossomática que os une ao espírito do celebrante, como já o foi amplamente demonstrado na primeira parte desse trabalho. Certos ritos religiosos, chamados sacramentos, permitiram e permitem transmitir uma influência espiritual que facilitará uma realização metafísica.
Os ritos acabaram por delimitar um círculo reservado, isto é, sagrado, nas civilizações que laicizaram no conjunto o seu domínio. Ora, tornar sagrado aquilo que fazemos, aquilo que somos, chama-se sacrificar, fazer um sacrifício, dedicando estes atos às potências invisíveis, das quais esperamos em retribuição ajuda e proteção, ainda quando estas potências se escondam sob a aparência da lei dos grandes números ou do cálculo das probabilidades.
Inumeráveis foram as formas desta súplica muda, desde os sacrifícios dos astecas ou dos egípcios no tempo das primeiras dinastias, até a matança das grandes guerras. Os sete sacramentos cristãos tornaram-se puros símbolos, cuja significação é precisada pelas orações comunitárias. Essa noção de sacrifício sobre a qual repousa sua tradição teve um desenvolvimento extraordinário entre os arianos védicos A. Daniélou nos revela que houve na Índia sacrifícios de cavalos que duraram anos, utilizaram milhares de sacerdotes e absorveram o lucro de grandes reinos.
A atividade ritual se insere no correr do ano, dos meses e dos dias, obedecendo aos ritmos fundamentais que determinam a vida, o ritmo cardíaco e o da respiração. O ritmo do pé tocando o solo gerou a dança a que acompanham geralmente o canto e a música. Trata-se de um gesto primitivo e primordial explicitado na China e entre os negros da África pelas danças do urso, e entre os ameríndios pelas do bisão, da águia, do condor e da serpente.
Deste ponto de vista, a Índia nos oferece o estágio mais elaborado dessa pulsação vital com a figura de Shiva, o deus da atividade e da alegria cósmica, cuja aparência popular é a de Rei da Dança (nataraja). Manifesta a energia vital no incessante defrontar de duas forças opostas. A mão direita do deus bate um pequeno tambor que marca o ritmo de sua dança. A mão esquerda mostra na palma uma língua de fogo. Dança sobre o corpo esmagado de um anãozinho que representa o homem mergulhado na sua ignorância. A auréola de chamas que o envolve simboliza a vitalidade inexaurível da natureza, assim como as luzes de seu conhecimento.
Sobre o mesmo tema, em nível mais humano, as dançarinas hindus desenvolvem a expressão dos oito sentimentos codificados pela sua arte: o amor, a compaixão, a surpresa, o riso, a cólera, a coragem, o terror e a paz, graças aos 50 gestos de suas mãos (mudras = selos das alianças) e às 125 atitudes de seu corpo.
As danças sagradas nos introduzem nos bastidores do teatro grego, onde reinava também a “choreia”, a rítmica, que unia a poesia, a música e a dança e que tinha na vida dos helenos uma importância maior que a das artes plásticas. Os mistérios órficos e dionisíacos comportavam danças como os nossos mistérios da Idade Média. E Platão dizia: “Seria necessário que nossos jovens dançassem, não apenas com perfeição, mas a perfeição”.
Encontramos no Japão um exemplo comparável da simbólica do teatro com o nô, cujos atores faziam acompanhar de um texto salmodiado suas atitudes hieráticas. Representam-se geralmente cinco nô por sessão. Vê-se no palco um peregrino ou um viajor chegando a um local ilustrado por uma antiga lenda, narrada a guisa de introdução por um camponês do lugar. Surgem em seguida as personagens do drama sob formas de espíritos ou de fantasmas, representados pelos habitantes do lugarejo. Alguns destes atores usam máscaras e todos se deslocam numa lentidão ritual. À esquerda dez figurantes formam o corpo, e à direita uma flauta, dois tamborins e um tambor constituem a orquestra.
Prosseguindo nessa linha do ritmo, que nos conduziu da dança à música e ao teatro, temos as festas rituais celebradas no início e no fim do ano, cuja finalidade essencial visa à renovação. Ela é geralmente simbolizada pela extinção e reanimação do fogo, o que não é um rito em desuso, já que fazemos ainda a fogueira de São João e que o mesmo rito periodicamente se efetua no Arco do Triunfo diante do túmulo do soldado desconhecido. Isso mostra que, além dos ritos religiosos, existem também ritos cívicos que deles se tornaram contrafações modernas.
Atividades que hoje nos parecem simples jogos, como o xadrez, as cartas, a pelota, o balanço, foram rituais. Sem esquecer as máscaras de Carnaval que permitem, como as Saturnais antigas ou as Orgias primitivas, restringir a alguns dias ou semanas excessos não consentidos em outras épocas.
Todos os povos praticaram mais ou menos esses ritos fundados na necessidade de uma certa coerência social. Mas existem outros inesperados, ainda que nos pareçam tão bem adaptados quanto os primeiros aos prazeres cotidianos, como um fumar cachimbo ou tomar uma xícara de chá.
Entre os Sioux concentrados nas reservas do Dakota, o Cachimbo sagrado, Calumet descido do céu, cuja fumaça se eleva como um incenso, representa como nos diz F. Schuon, uma síntese doutrinal e um instrumento ritual sobre o qual está centrada a vida espiritual dos Peles-Vermelhas. O ritual completo do Cachimbo supõe três fases, da purificação pela fumaça, sua expansão pelas dimensões do universo até o simbolismo do sacrifício pelo fogo.
No Japão, a cerimônia do chá provém de um ritual.instituído pelos monges zen que tinham o hábito de tomar seu chá numa tigela diante da imagem de seu fundador Bodhidharma. Tudo o que era necessário a esse rito, da casa de chá ao jardim que a cerca e à aleia que aí nos conduz, dá impressão de simplicidade, de serenidade e de pureza. Em luz tênue, envolvida de silêncio e onde se esbate o tom discreto das paredes nuas, foram dispostos fogareiros de ferro e escuta-se apenas o murmúrio da água que canta na chaleira, cujo marulhar surdo parece vir de uma catarata ou de um mar longínquo…
São as mesmas Nippons fiéis do zen que praticam o rito do tiro de arco. Sucedendo à moca de madeira dura, ao machado de pedra e à funda, o arco foi a primeira arma um pouco mais precisa do homem pré-histórico. No domínio das artes e das armas, tendo como condição o domínio de si, o uso do arco tornou-se no Japão uma escola de concentração espiritual. O atirador deveria tornar-se bastante hábil, bastante desligado, para retesar o arco tão naturalmente quanto respira e soltar a flecha de tal forma despreocupado que atinja o seu objetivo até de olhos fechados. Sendo a flecha o arqueiro e Deus o alvo, só se pode atingi-lo num despojamento absoluto.
O teatro e o tiro de arco conduzem-nos aos rituais antigos da caça e da guerra que, na cavalaria, tornaram-se ritos de iniciação. Nós nos deteremos em duas práticas mais reveladoras da significação geral desses costumes, as práticas das peregrinações e das viagens, que, aliás, tiveram seguramente uma relação entre si.
É difícil precisar, por exemplo, os motivos que determinaram as Cruzadas, a fé ou a guerra, sem dúvida inseparáveis no espírito cavaleiresco. Quanto ao teatro, não se trata apenas de um símbolo completo da vida humana, mas acha-se ligado às viagens em sua origem e, entre todos os povos, começou por ser ambulante.
Em muitas tradições os diferentes estágios iniciáticos são considerados como etapas de uma viagem ou de uma navegação. Este estado de vagabundagem é um estado de provação do qual as diversas aventuras, como as de Ulisses na Odisséia ou as do herói chinês de Si-Yeou-Ki, podem ser consideradas como uma ilustração dos Pequenos Mistérios.
Existe enfim um último rito, o mais importante talvez, ainda que não seja habitual considerá-lo dessa perspectiva, e que é a escrita. É um símbolo da linguagem falada, que é também simbólica. É portanto um símbolo de segundo grau. Mas, se o homem fala desde que existe, só escreveu de uns 30.000 anos para cá”, durante os quais a escrita ultrapassou as etapas sucessivas: dos pictogramas pré-históricos que transmitem mensagens em “fitas desenhadas”, ideogramas egípcios e chineses que apenas comunicavam a ideia, até os alfabetos silábicos e fonéticos dos fenícios que transmitem a palavra e o som, sem que tenha forçosamente havido evolução de uns para os outros.
Os ¡deogramas constituem o que se poderia chamar a escrita absoluta, já que independem da língua falada. Constituem uma linguagem sintética e muda, puramente visual, como os algarismos ditos arábicos que podem ser compreendidos por todos os povos, ainda que não se refiram às mesmas palavras.
Praticada na origem pelos sacerdotes, pelos secretários dos antigos soberanos, a escrita por muito tempo foi um depósito sagrado protegido, como o eco de uma língua original, onde a forma das letras era hierática, já que estava destinada a veicular uma ideia cuja transcendência original correspondia à transcendência do mundo. Pois o mundo era considerado como um livro que desvelava a mensagem divina, e as escritas tradicionais não passavam de traduções disso numa língua visível. Realmente a “ciência das letras”, diz René Guénon, era o conhecimento de todas as coisas e a caligrafia, que reproduzia o processo cosmogônico, era um rito prévio á iniciação dos escribas, iodos clérigos por natureza. [Benoist]