Savonarola

Savonarola, Girolamo (1452-1498)

A figura de Jerônimo Savonarola tem o raro privilégio de não deixar ninguém indiferente.

Mereceu os títulos de santo, herege, mártir, reformador e profeta. O passar do tempo não conseguiu diminuir a paixão e o ardor que inspiraram esse florentino. Para isso contribuiu, sem dúvida, sua rica personalidade cheia de fogo e contrastes, seu papel político num cenário concreto como a Florença dos Médicis, seu enfrentamento à corte romana e à corrupção da Igreja, e sua missão de reformador e profeta do povo cristão. O caso Savonarola tipifica o protesto e a reforma que, ao longo da velha Europa, vinha-se realizando durante os séculos XIV e XV.

Nascido em Ferrara em 1452, ingressou aos 23 anos no convento dos dominicanos de Bolonha. Aí iniciou e completou sua formação escolástica baseada em Santo Tomás, Santo Alberto e Aristóteles. Logo começou a se destacar como pregador e teólogo. De Bolonha passou a Florença, onde viveu o triênio 1482-1485. A segunda e definitiva volta a Florença deu-se em 1490, agora por petição de Lourenço de Médicis, sendo nomeado no ano seguinte prior de São Marcos. Os últimos sete anos fizeram de Florença e do púlpito o cenário de sua atividade: começou seu papel de político, reformador, pregador arrebatado da multidão e líder do protesto contra o poder político e religioso. O enfrentamento a esse duplo poder e a denúncia que fez dos dois levaram-no à condenação. Quando em 1498 o governo uniu-se à Igreja no desejo de se desfazer dele, não foi difícil — com a ajuda da tortura — estabelecer as acusações de heresia que o levaram à forca e depois à fogueira.

Quatro aspectos merecem destaque na atividade falada e escrita de Savonarola: a) o estudioso da doutrina teológico-política; b) o frade que se uniu e promoveu a proposta do partido e do povo contra o materialismo dos Médicis e o seu mau uso da autoridade; c) o asceta e reformador rígido e implacável que enfrenta a corrupção do papa, da corte romana e do clero; d) o pregador iluminado que revolucionou o povo florentino, exigindo uma vida austera e prometendo um futuro cheio de esperanças.

— Não se pode negar a Savonarola um conhecimento sólido do pensamento cristão dos padres, sobretudo de Santo Agostinho, acentuando, principalmente, o problema soteriológico do homem e da vida. Em sua obra O triunfo da cruz, de caráter teológico-filosófico, sustenta a inaceitabilidade da religião dos filósofos e dos poetas, opondo a solidez inquebrantável da fé cristã. Rejeita toda possível síntese da religião cristã e da filosofia pagã. Está muito longe de compartilhar os ideais da docta religio e da pia quaedam philosophia. Rejeita também de uma forma radical, a astrologia, que humanistas como Ficino e Pico queriam integrar na religião.

— E conhecida sua postura política diante do poder dos Médicis primeiro, e a favor do invasor Carlos VIII da França depois, diante de quem foi embaixador por duas vezes. Rejeitou ao primeiro por abuso de autoridade e pelo paganismo materialista de sua corte. Savonarola aplicou neste caso a doutrina de seu Compendium totius philosophiae, tam naturalis quam moralis, e do Trattato circa il reggimento de la città de Firenze (1489). Nessas duas obras expressa-se a doutrina política de Savonarola sobre a função essencial do Estado, para permitir ao homem o pleno exercício das virtudes, para que este possa exercer seus fins naturais e preparar a consecução de sua bem-aventurança sobrenatural. Subordina o aspecto político ao religioso, recalcando o princípio medieval da unidade e do universal. No Trattato aplica essas ideias à cidade de Florença. E embora o bom governo, em sentido absoluto, tenha sua forma institucional na monarquia, propugna como mais oportuno para o povo florentino não a forma monárquica, mas o “reggimento civile”, ou governo dos cidadãos, ou república. E o modelo de uma oligarquia moderada e ilustrada. Acaso não procurava Savonarola uma democracia teocrática em Florença?

— Do enfrentamento ao poder civil, passou Savonarola ao enfrentamento ao poder religioso. Sua pregação abriu-se ao horizonte mais longínquo de Roma, que entrou também numa época de paganismo e de corrupção. “Somente uma coisa há neste nosso tempo que nos deleita, pregava Savonarola aos florentinos em 1493: que todo ele está enfeitado com ouropéis. Nossa Igreja tem muitas belas cerimônias externas para dar solenidade aos ofícios eclesiásticos, com belas vestimentas, com muitos estandartes, com candelabros de ouro e prata. Tu vês ali aqueles grandes prelados com maravilhosas mitras de ouro, e esses homens te parecem de grande prudência e santidade. E não acreditas que possam equivocar-se, senão que tudo o que dizem e fazem deve observar-se no Evangelho. Eis como está construída a Igreja moderna. Os homens contentam-se com essas folhagens…”. “Os que te odeiam, Senhor, são os pecadores e os falsos cristãos, e principalmente os que estão constituídos em dignidades. E estes são glorificados hoje por terem acabado com a rigidez e a severidade dos cânones, com as instituições dos santos padres, com a observância das boas leis… Vês hoje os prelados e os pregadores prostrados com seu afeto em terra, o cuidado das almas já não lhes inquieta o coração, somente pensam em tirar proveito” (Sermões do advento, XXIII, 1493).

O objetivo mais direto da prédica de Savonarola foi a pessoa de Alexandre VI e sua corte mundanizada. Foi chamado a Roma e excomungado em 1497.

— Há, finalmente, um aspecto nele que não pode passar despercebido: sua pregação, seus sermões, ao longo de oito anos, ao povo de Veneza desde o púlpito de São Marcos: “Seus sermões, que combinavam chamados ao arrependimento com comentários sobre os assuntos constitucionais, tinham uma capacidade de perturbação e fascinação que podemos recuperar de modo muito expressivo nos que tomaram forma muito abreviada ou se publicaram a partir de suas notas”. Em seus sermões identificava-se completamente com os florentinos, aqueles que adulava ao mesmo tempo que repreendia. Através deles, reforçou a crença popular, já latente, de que Deus o tinha designado para um destino especial. Desencadeou uma verdadeira cruzada moral, convencendo os florentinos de que cumpriam um papel de designação divina na purificação de toda a Itália do pecado pessoal e da corrupção eclesiástica.

Sua personalidade cheia de encanto e de força fez com que, embora as cinzas de sua fogueira se atirassem ao Arno, suas ideias viessem à superfície em circunstâncias críticas da história da Igreja, sempre necessitada de reformadores.

BIBLIOGRAFIA: Obras: 1633-1640, 6 vols.; Opere inedite, 1835; A. Huerga, Savonarola, reformador y profeta (BAC). (Santidrián)

DIcionário da Idade Média