A atribuição da mesma origem à divindade, ao sol, à luz, ao espírito (atman) e à energia criadora atuante em todos os níveis cósmicos parece existir desde a época védica. No Rig Veda X. 121.1., Prajapati, o Criador, é apresentado como Hiranyagarbha, “o embrião dourado”, ou seja, o sêmen solar. Os Brahmanas explicitamente consideram o semen virile uma epifania solar. “Quando o pai humano o emite como semente para dentro do útero, é realmente o Sol que o emite para dentro do útero”, porque “a Luz é o poder procriador”. Contudo, no Brihadaranyaka Upanixade o semen virile é o veículo único do imortal (i.e., atman-Brahman): “Aquele que está presente no sêmen, a quem o sêmen não conhece, para quem o sêmen é o veículo ou corpo, esse é o ser (atman), o controlador interior, o Imortal. Contudo, o Chandogya Upanixade (III, 17.7) estabelece uma relação entre o “sêmen primordial” e a luz, a “luz mais elevada”, em última análise, o sol. (Eliade)
É difícil para nós decidir se tais concepções refletem tradições hindus (ou tradições antigas indo-iranianas) ou são influenciadas por teorias iranianas tardias, ou seja, maniqueístas. A concepção da consubstancialidade do
espírito (divino), luz e semen virile é, certamente, indo-iraniana e pode mesmo ser mais antiga. Por outro lado, há pelo menos um caso onde as influências maniqueístas são plausíveis, ou seja, na interpretação dada por Candrakirti sobre o rito tântrico secreto maithuna. Como é bem sabido, a relação sexual ritualística com a jovem (mudra, yogint) não deve terminar pela emissão seminal (boddhicittam notsrjet).30 Já em 1935, Tucci salientou a importância do comentário de Candrakirti e das observações de Ts’on k’a pa sobre o Guhyasanwja Tantra. Segundo uma velha tradição, Candrakirti interpreta os Tathagatas ou skandhas como simples elementos luminosos, mas ele especifica que “todos os Tathagatas são cinco luzes”, ou seja, são elementos multicoloridos. Candrakirti prescreve que, durante a meditação, o discípulo deve visualizar o Buda imerso numa luz ofuscante. Ts’on k’a pa explica que a verdade absoluta – a intuição imediata (nirvikalpa) – é o conhecimento místico dessa luz. Comentando sobre a união mística do buda com a sakti correspondente, tanto Candrakirti quanto Ts’on k’a pa afirmam que o boddhicitta (literalmente, “pensamento de iluminação”) é a gota, bindu, que flui do alto da cabeça e preenche os dois órgãos genitais com uma manifestação de luz quíntupla: “durante o tempo de união ( com a sakti;, deve-se meditar sobre a vajra ( = membrum virile) e o padma ( = útero), ao ser preenchido no interior por uma luz quíntupla, branca, etc”. Para Tucci, “a importância dos elementos luminosos no processo das emanações cósmicas como aquele da salvação mística” é surpreendentemente análoga aos cinco elementos luminosos que exercem uma função primordial na cosmologia e na soteriologia maniqueístas.
Como tantos outros tantras budistas e hindus, o Guhyasanwja ilustra com muitos exemplos as revalorizações multiformes e por vezes inusitadas que um ritual antigo e uma ideologia religiosa tradicional assumem. A prática sexual e o simbolismo erótico têm sido documentados na vida religiosa hindu desde os tempos védicos. O maithuna como um ato sacramental cujo fim último é a identificação do casal humano com seu modelo divino (Siva e Sakti, Buda e sua prapta) é uma exigência do Tantrismo hindu de esquerda e de muitas escolas Vajarayana. Contudo, o que nos surpreende no Gulryasamaja Tantra e nos seus comentários é o esforço para “experimentar” as cinco luzes místicas durante a união sexual, que não passa de um “jogo” cerimonial (lila), uma vez que nenhuma emissão seminal deve ocorrer (boddhicittan notsrjet). Como já vimos (p. 107), essas luzes multicoloridas são experimentadas pelos ascéticos e contemplativos durante suas meditações de ioga. A tradição indo-tibetana afirma que a alma, imediatamente após a morte, confronta-se com essas luzes, no estado de bardo. Não se pode duvidar do caráter sensorial de tais fotismos extáticos. Podemos citar inúmeros exemplos análogos de documentos que descrevem experiências de luz interior, naturais ou provocadas por drogas. Dessa forma, devemos enfatizar a qualidade sensorial das luzes místicas: elas são autênticos fenômenos psíquicos, ou seja, não são deliberadamente “imaginadas” ou racionalmente criadas e classificadas a fim de se construir um “sistema” cosmológico ou antropológico.
Com relação ao preceito tântrico boddhicittam notsrjet, ele nos faz lembrar a proibição maniqueísta de emitir o sêmen e engravidar a mulher. O significado e a função da retenção seminal são, sem dúvida, diferentes no Maniqueísmo e no Tantrismo. Contudo, também se observa, no Maniqueísmo, a identificação do semen virile com a luz divina e cósmica (Eliade)