substância

Existência da substância.

A existência de seres substanciais ou de substâncias é admitida por Aristóteles e por Tomás de Aquino sem aparentes hesitações. Para eles, é um fato evidente, ou pelo menos uma constatação que impõe a mais elementar análise do dado. A filosofia moderna, pelo contrário, desde Locke, vê aí todas as espécies de dificuldades e, de modo corrente, termina pela sua negação. Como — dizem — podeis ter a pretensão de atingir um objeto que por definição se situa aquém daquilo que nos aparece? Nosso conhecimento termina nos fenômenos e não pode ir adiante; a afirmação da substância é, portanto, inteiramente arbitrária, se já não for contraditória. E, precisam alguns, se o senso comum é levado a supor a existência, sob as aparências, deste sujeito inerte do qual a filosofia fez a sua substância, não é apenas para satisfazer os postulados lógicos da atribuição? Uma vez que há um sujeito na proposição, não deve igualmente haver um na realidade: a substância não é mais do que uma reificação indevida do sujeito lógico da proposição. Estas críticas obrigam o moderno discípulo de Tomás de Aquino a considerar de mais perto os fundamentos sobre os quais repousa sua doutrina da substância.

A análise mais simples e mais óbvia que possa nos colocar na via da descoberta da substância é a da mudança. O dado do conhecimento se nos apresenta sob a forma de uma multiplicidade de aspectos variados. Destes, alguns são mutáveis, enquanto outros parecem permanecer estáveis. Consideremos o exemplo mais banal. Eis aqui a água que se esquenta. Sua temperatura se eleva, mas estamos persuadidos que a água permanece sempre água. Não posso mesmo conceber que ela se tornou mais quente, que adquiriu uma nova qualidade na ordem calorimétrica, se ela não permaneceu a mesma água. Se não subsistisse absolutamente nada da água primitiva ao termo da transformação, não se poderia dizer que esta água esquentou. Como Aristóteles o fez ver bem na sua pesquisa sobre os princípios do ser da natureza, a noção de mudança supõe necessariamente a de sujeito ou de substrato. Talvez esse sujeito seja ele mesmo mutável, o que ME conduzirá a reconhecer-lhe um sujeito mais primitivo, e assim sucessivamente. Mas como não posso recuar indefinidamente no reconhecimento dos sujeitos sucessivos, será preciso que, finalmente, admita a existência de um primeiro sujeito que será essencialmente sujeito. Levada ao seu termo, esta análise nos conduziria com Aristóteles até o reconhecimento da matéria primeira que é, de algum modo, anterior à substância. Mas se nos detivermos no plano das modificações acidentais, isto é, daquelas que supõem a permanência de um substrato de natureza já determinada, atingiremos com certeza a substância na sua função de sujeito da mudança. Toda mudança que não afeta a natureza mais profunda das coisas supõe a permanência desta natureza, isto é, a substância.

Esta demonstração da substância a partir da análise da mudança é incontestavelmente válida; contudo, ela não faz atingir diretamente a substância no que ela tem de mais essencial; e, por outro lado não é por este desvio que Aristóteles aborda esta primeira categoria do ser. Com efeito, eis o que lemos no início do Livro 7: “O ser se toma em várias acepções. Significa, com efeito, de um lado, a essência e o indivíduo determinado; de outro lado, que uma coisa possui tal qualidade ou tal quantidade ou cada um dos predicamentos dessa espécie. Mas dentre estes sentidos tão numerosos do ser, vê-se claramente que o ser, no sentido primeiro, é a essência que indica precisamente a substância… As outras coisas somente são chamadas ser porque são ou quantidades do ser propriamente dito, ou qualidades, ou afecções desse ser, ou qualquer outra determinação desse gênero… É, portanto, evidente que é por esta categoria (a substância) que cada uma das outras categorias existem. De modo que o ser, no sentido fundamental, não tal modo de ser, mas o ser absolutamente falando deve ser a substância”. Para Aristóteles, se ela se manifesta com os caracteres de um substrato, a substância tem, portanto, também o valor de ser primeiro, de princípio de existência, sob um certo ponto de vista, para as outras modalidades. É que o fundamento profundo desta análise que conduz à substância não é outro senão a natureza analógica do ser. Há múltiplas modalidades do ser, é um fato, e esta multiplicidade somente é inteligível se possui uma certa unidade, e ela não pode ter unidade senão em relação a um primeiro termo que será o ser essencial e fundamental (pelo menos em uma certa ordem). A substância aparece aqui como o princípio de unidade e de inteligibilidade do dado que é múltiplo.

Vê-se, pois, o que convém responder aos que pretendem que a substância seja uma entidade quimérica ou pelo menos que escapa ao nosso poder, porque nossa percepção se deteria nos fenômenos e, portanto, nos acidentes. De início, é preciso afirmar que o que é imediatamente dado não é, nem o fenômeno no sentido subjetivista da palavra, nem a substância como tal, mas o ser concreto implicando indistintamente substância e acidentes. A análise nos permite, em seguida, discernir neste conjunto global as modalidades mutáveis e diversas, de que se tratou precedentemente, e remontar, para torná-las inteligíveis, -à substância, ao mesmo tempo substrato e ser primeiro, à qual todo 0 organismo dos acidentes se reporta. Se, portanto, não é, a bem dizer, o objeto de uma intuição, a substância é atingida em virtude de uma inferência imediata e necessária.

De onde esta consequência extremamente importante: estamos na impossibilidade de distinguir de modo imediato e evidente as substâncias particulares. Rigorosamente, as análises feitas até aqui não nos impeliriam senão a reconhecer a existência necessária de uma só substância criada. Todavia a hipótese de uma pluralidade de substâncias é infinitamente mais conforme ao dado. Parece praticamente impossível recusar a individualidade substancial dos seres vivos e, ainda que isto seja menos claro, dos elementos últimos do mundo inorgânico. Aos que pretendem que a doutrina da substância não é mais do que uma transposição ontológica arbitrária de um esquema lógico de pensamento, é preciso responder fazendo valer, por uma análise do juízo, que as modalidades da afirmação correspondem com efeito a verdadeiras determinações do ser objetivo que as condicionam. As categorias, e portanto a substância, têm uma envergadura realista ao mesmo tempo que uma significação lógica.

Natureza e propriedades da substância

Cf. notadamente: Aristóteles, Categorias, c. 5.

No sentido etimológico da palavra, o termo substância significa o que está por debaixo das aparências ou dos acidentes (sub-stare), e que, por este fato, é o sujeito dos acidentes. Esta propriedade de ser o suporte dos acidentes pertence com efeito à substância, mas não exprime a sua natureza mais profunda. Aristóteles dela se aproxima bastante quando no início do cap. 5 das Categorias declara: “A substância no sentido mais fundamental, primeiro e principal do termo, é o que não está, nem afirmado do sujeito, nem em um sujeito.” Esta segunda definição corresponde bem à essência da substância, mas ainda não a caracteriza senão negativamente, como um non esse in subjecto. Ora a substância deve evidentemente ser uma perfeição positiva que será melhor significada pois pela expressão esse in se.

Assim, pois, segundo nosso modo de conceber, a substância aparece sucessivamente coma o ser suporte dos acidentes, o ser que não está em um outro, o ser que é em si. Mas um gênero particular do ser somente pode se distinguir pelo seu aspecto quididativo, enquanto é uma natureza; se portanto se quer chegar a uma fórmula perfeitamente exata, não se definirá a substância como o que (de fato) existe em si, mas “o que é apto a existir em si e não em um outro como em um sujeito de inerência”

quod aptum est esse in se et non in alio tanquam in sujecto inhaesionis.

Diz-se ainda que a substância é “o ser por si” ( per se ens) e que tem por constitutivo formal a “perseidade”. Esta fórmula é admissível, mas, com a condição de se fazer observar o valor não causal da determinação “por si”. Em termos rigorosos, somente Deus é .o ens per ser. A substância é “por si” somente no sentido de que possui em si tudo o que é preciso para receber a existência. Logicamente, reconhecer, em toda a sua fôrça, a “perseidade” na substância conduz, nas pegadas de Espinosa, ao monismo panteísta.

Nos livros 7 e 8 da Metafísica, procurando precisar a natureza da substância sensível, Aristóteles se pergunta se essa substância não deve ser levada a uma destas quatro coisas: o universal, o substrato, a forma ou o composto dos dois últimos. Eliminando absolutamente a solução platônica, segundo a qual a substância seria uma ideia separada, chega à conclusão, sem afastar inteiramente a hipótese da substância — substrato, que a substância é sobretudo forma, isto é, a causa “em razão da qual a matéria é algo de definido”. Assim, a substância, mesmo sendo substrato, é também, e sobretudo, princípio formal, isto é, essência determinada, o que nos afasta da concepção puramente receptiva de sujeito material dos acidentes.

Na sequência do cap. 5 das Categorias, Aristóteles enumera uma série de seis propriedades da substância que a tradição escolástica fez sua. A primeira, não ser em um sujeito, non esse in subjecto, em realidade apenas reproduz a fórmula negativa da definição da substância. A segunda, ser atribuído em um sentido sinônimo, univoce praedicare, somente pode convir, evidentemente, à substância segunda. A terceira, significar “este algo”, significare hoc aliquid, se refere, pelo contrário, non habere contrarium, vale igualmente para os dois gêneros de substância. O mesmo ocorre com a quinta, não ser suscetível de mais e de menos, non suscipere majus et minus, que significa, não que uma substância possa ser mais ou menos substância do que outra, mas que a mesma substância não poderá jamais ser dita mais ou menos do que é em si mesma. Enfim, com a sexta, ser apto a receber os contrários, esse susceptivus contrariorum, atingimos o que é o caráter distintivo, o proprium, da substância. Nenhum outro modo de ser poderá, permanecendo idêntico a si mesmo, receber sucessivamente os contrários: a mesma cor não pode ser branca e negra, ao passo que o mesmo corpo de branco pode tornar-se negro. Tais são para Aristóteles as propriedades da substância.

Divisões da substância.

Substâncias primeiras, substâncias segundas. A mais clássica das divisões aristotélicas da substância é a que se encontra nas Categorias (c.5) em substâncias primeiras e substâncias segundas. A substância primeira não é outra coisa senão o sujeito individual concreto, “Pedro”, “Callias”; ela não está em um sujeito e não pode ser atribuída a um sujeito. A substância segunda designa o universal que exprime a essência de um sujeito, “homem”, “cavalo”; ela não está, propriamente falando, em um sujeito, mas pode, por outro lado, ser atribuída a um sujeito: assim pode-se dizer que “Pedro é homem”. É fácil ver que esta distinção, feita do ponto de vista das possibilidades da atribuição, possui um interesse principalmente lógico. Para o metafísico, a substância é diretamente o sujeito concreto, isto é, a substância primeira.

Substância simples e substâncias compostas. A divisão essencial do predicamento substância é a que corresponde à primeira dicotomia da árvore de Porfírio em substâncias simples (imateriais) e substâncias compostas (materiais).

As substâncias materiais são caracterizadas pela sua composição interna em matéria e forma; e estes dois elementos são dois princípios complementares que, com exceção do caso da alma humana, não podem subsistir isoladamente. Foi, recorda-se, principalmente o fenômeno físico da geração e da corrupção das substâncias materiais que conduziu ao reconhecimento destes dois princípios distintos. A substância material é dividida, de um ponto de vista lógico, pelas diferenças vivente, não vivente etc… De um outro ponto de vista, os antigos admitiam uma outra distinção das substâncias corporais que a física moderna abandonou: a de corpos corruptíveis e a de corpos incorruptíveis. Uns e outros eram compostos de matéria e forma mas, ao passo que as substâncias sublunares se encontravam submetidas ao conjunto das transformações, compreendidas, geração e corrupção substanciais, as substâncias celestes eram incorruptíveis na sua natureza e sujeitas sãmente às mudanças de lugar.

As substâncias imateriais não são compostas de matéria e forma. Por analogia sãmente dir-se-á que elas são formas separadas. O estudo metafísico e noético destas substâncias apenas foi bem conduzido na filosofia cristã, à qual a doutrina revelada dos anjos assegurava um sólido ponto de apoio. Para Tomás de Aquino, pelo fato de que elas não possuem matéria, estas substâncias não podem ser multiplicadas numericamente; cada anjo é único em sua espécie, e o conjunto das espécies angélicas constitui, segundo a diversidade das essências, uma hierarquia formal.

Problemas relativos à substância.

Unidade do composto substância-acidentes. Substância e acidentes são realmente distintos. O argumento mais manifesto a favor dessa distinção é que os acidentes, pelo menos alguns dentre eles, podem mudar e mesmo totalmente se corromper sem que a substância seja modificada. Pode-se igualmente fazer valer que a natureza de certos acidentes se opõe à da substância, o que acarreta a real distinção das duas modalidades de ser (a quantidade, por exemplo, implica por si a divisibilidade, ao passo que a substância diz, de início, unidade). Mas, objetar-se-á, pela afirmação da realidade da distinção substância-acidentes, não se chegará a comprometer a unidade do ser concreto e a tornar pouco inteligíveis suas mutações, as quais não parecerão mais ser, nesta hipótese, senão transformações de superfície artificialmente superpostas à inércia dos substratos imóveis? É preciso responder a estas objeções que poderíamos encontrar no fundo de muitas das dificuldades dos modernos, que a real distinção dos acidentes não impede que estes constituam com a substância um único ser concreto. Eles não têm, em verdade, existência independente: eles “inerem”, “in-existem”, se se pode assim falar, no sujeito. O que existe, é o ser concreto, na sua realidade substancial, completada por suas modalidades acidentais. Do mesmo modo, o que muda, o que age é o mesmo ser concreto, actiones sunt suppositorum: é o homem que pensa, é o fogo que queima. Nada de mais inexato, portanto, do que se representar a substância como uma espécie de suporte inerte sob um revestimento superficial e mutável de acidentes. Ainda que realmente múltiplo em seus princípios, o ser concreto é uno e age por tudo o que é.

Individuação da substância material. Sendo a substância o ser concreto, esta não poderá existir senão no estado de indivíduo. Então, uma vez que, de fato, esses indivíduos são múltiplos, se põe a questão de saber em que esses indivíduos se distinguem uns dos outros. No caso das substâncias espirituais que são formas puras, é pela sua forma ou pela sua essência mesma, e em consequência não pode haver várias substâncias deste tipo possuindo uma mesma natureza: todos os anjos, dir-se-á, são de espécies diferentes. Acontecerá o mesmo no caso das substâncias materiais? Aqui se encontram manifestamente multiplicidades de indivíduos de mesma espécie, isto é, que são formalmente os mesmos. Um outro princípio de diferenciação, ou se se quiser, de individuação é aqui exigido. Conforme Aristóteles, Tomás de Aquino julga que este princípio de individuação só pode ser, radicalmente, a matéria. O ser que é individuado na sua substância só pode sê-lo por um princípio substancial que, não sendo neste caso a forma, é necessariamente a matéria. Todavia a matéria só preenche esta função se for determinada por um acidente, a quantidade, materia signata quantitate. Tomás de Aquino (De Trinitate, q. 4, a. 2) dá a razão disso. A forma, com efeito, só pode ser individuada se for recebida em tal matéria distinta e determinada. Ora, a matéria sãmente é divisível, e portanto distinguível, pela quantidade. Não haverá, pois, para ser distinta senão uma matéria já compreendida sob certas dimensões ou quantificada. S.

Tomás precisa, em seguida, que essa quantificação não implica necessariamente um termo preciso ou dimensões determinadas, mas sãmente dimensões cujo termo não é fixado, e pode assim concluir que: “ex his dimensionibus interminatis efficitur haec materia signata, et sic individuat formam, et sic ex materia causatur diversitas secundum numerum in eadem specie”.

O problema da subsistência. O aprofundamento dos mistérios revelados, notadamente o da incarnação, conduziu à posição de um novo problema, o da subsistência, problema que não é desprovido de interesse para a filosofia.

Notemos que nestas pesquisas designa-se pelo termo de suppositum o indivíduo substancial subsistente; no caso do ser dotado de razão é também chamado pessoa, persona. Eis do que se trata então: em um indivíduo concreto não há lugar para se estabelecer uma distinção real entre a pessoa ou o suppositum de um lado, e a natureza ou a essência individual de outro lado? E, no caso de uma distinção real, por qual razão formal a substância existente possui esta independência esta incomunicabilidade, que a separa de toda outra substância?

Os comentadores de Tomás de Aquino, desde Caietano, se decidem o mais comumente pela distinção real e, para determinar ou terminar a substância na ordem da autonomia concreta, requerem uma formalidade particular, a subsistência, que, a título de modo substancial, vem dar à natureza considerada o pertencer propriamente a tal indivíduo, o ser incomunicável. A razão que se invoca em favor da instituição desta entidade de acréscimo é que a essência, se ela possui por si o que é preciso para determinar e, portanto, para limitar a existência do ponto de vista da natureza específica, permanece, no entanto, impotente para dar conta da subsistência independente. Em definitivo, na ordem do criado, o sujeito concreto aparece como uma natureza individual que culmina em um modo substancial distinto, a subsistência, e que vem atuar, do ponto de vista do ser, a existência que lhe é própria. (Gardeil)

DIcionário da Idade Média