Em 1028, o último rei Chang foi derrotado pelo Duque de Tcheu. Este, numa proclamação famosa, justificava a sua revolta contra o rei pela ordem que recebera do Senhor celeste de pôr termo a um domínio corrompido e execrável. Trata-se do primeiro enunciado da célebre doutrina do “Mandato do Céu”. O duque vitorioso torna-se rei dos Tcheu, inaugurando, assim, a mais longa dinastia de toda a história da China (aprox. 1028-256). Para o que nos propomos, seria inútil resumir os seus momentos de grandeza, as crises e a decadência. Basta-nos lembrar que é do século VIII ao século III a.C, apesar das guerras e da insegurança geral, que desabrocha a civilização chinesa tradicional e que o pensamento filosófico alcança o seu apogeu.
No princípio da dinastia, o deus celeste T’ien (Céu), ou Chang-ti (O Senhor do Alto), apresenta os traços de um deus antropomorfo e pessoal. Mora na Ursa Maior, no Centro do Céu. Os textos põem em destaque a sua estrutura celeste: ele tudo vê, observa e ouve; é clarividente e onisciente; o seu decreto é infalível. T’ien e Chang-ti são invocados nos pactos e contratos. Mais tarde, a onisciência e onividência do Céu são celebradas por Confúcio e por muitos outros filósofos, moralistas e teólogos, de todas as escolas. Para estes últimos, porém, o Deus do Céu vai progressivamente perdendo a sua natureza religiosa; torna-se o princípio da ordem cósmica, o garante da lei moral. Esse processo de abstração e de racionalização de um Deus supremo é frequente na história das religiões (cf. Brahman, Zeus, o Deus dos filósofos na época helenística, no judaísmo, no cristianismo e no Islã).
No entanto, o Céu (T’ien) continua a ser o protetor da dinastia. O rei é “filho de T’ien” e “regente de Chang-ti”. É por essa razão, em princípio, que só o rei está qualificado para lhe oferecer sacrifícios. É ele o responsável pelo desenvolvimento normal dos ritmos cósmicos; em caso de desastre — seca, prodígios, calamidades, inundações — o rei submete-se a ritos expiatórios. Uma vez que todo deus celeste governa as estações, T’ien também exerce uma função nos cultos agrários. Por isso, o rei deve representá-lo nos momentos essenciais do ciclo agrário (cf. § 130).
O culto dos antepassados prolonga em grande parte as estruturas estabelecidas na época dos Chang. (Entretanto, as informações de que dispomos referem-se apenas aos rituais praticados pela aristocracia.) A urna-casa é substituída por uma tabuinha, que o filho depositava no templo dos antepassados. Quatro vezes por ano, realizavam-se cerimônias extremamente complexas; faziam-se oferendas de carne cozida, cereais e licores, e invocava-se a alma do antepassado. Este último era personificado por um membro da família, geralmente um dos netos do morto, que compartia as oferendas. Cerimônias análogas são bastante comuns na Ásia e em outros lugares; um ritual que punha em cena o representante do morto era praticado, muito provavelmente, na época dos Chang, ou mesmo já durante a pré-história.
As divindades ctonianas e os seus cultos têm longa história, sobre a qual estamos modestamente informados. Sabe-se que, antes de ser representada como Mãe, a Terra era considerada uma força criadora cósmica, assexuada ou bissexuada. Segundo Marcel Granet, a imagem da Terra-Mãe aparece a princípio “sob o aspecto neutro do Lugar Santo”. Um pouco mais tarde, “a Terra doméstica foi imaginada sob a aparência de uma força materna e nutridora”. Nos tempos antigos, os mortos eram sepultados no recinto doméstico, no lugar onde se conservavam as sementes. Ora, a guardiã das sementes continuou a ser, durante muito tempo, a mulher. “No tempo dos Tcheu, os grãos destinados a semear o campo real não eram de modo algum guardados no quarto do Filho do Céu, mas nos aposentos da rainha” (ibiã., p. 200). Somente mais tarde, com o aparecimento da família agnática e do poder senhorial, foi que o Solo se converteu num Deus. Na época do Duque de Tcheu, havia inúmeros deuses do Solo, hierarquicamente organizados: deuses do Solo familiar, deus da aldeia, deuses do Solo reais e senhoriais. O altar ficava em local descoberto, mas continha uma tabuleta de pedra e uma árvore — relíquias do culto original consagrado à Terra na qualidade de força cósmica. Os cultos campestres, articulados em torno das crises sazonais, representam provavelmente as primeiras formas dessa religião cósmica, pois, como acabamos de ver (§ 130), a Terra não era considerada unicamente como fonte da fertilidade agrária. Por ser uma força complementar do Céu, revelava-se parte integrante da totalidade cósmica.
Importa acrescentar que as estruturas religiosas que acabamos de evocar não esgotam a rica documentação sobre a época dos Tcheu (materiais arqueológicos e, sobretudo, uma grande quantidade de textos). Completaremos a exposição apresentando alguns mitos cosmogônicos e as ideias metafísicas fundamentais. Lembremos, por enquanto, que ultimamente os pesquisadores vêm concordando em salientar a complexidade cultural e religiosa da China arcaica. Tal como sucede com tantas outras nações, a etnia chinesa não era homogênea. Além disso, nem a sua língua, nem a sua cultura, nem a sua religião constituíam inicialmente sistemas unitários. Wolfram Eberhard destacou a contribuição dos elementos étnicos periféricos — tai, tunguses, turco-mongóis, tibetanos etc. — à síntese chinesa. Para o historiador das religiões, essas contribuições são preciosas: ajudam-no a compreender, entre outras coisas, o impacto do xamanismo setentrional sobre a religiosidade chinesa e a “origem” de certas práticas taoistas.
Os historiógrafos chineses estavam conscientes da distância que separava a sua civilização clássica das crenças e práticas dos “bárbaros”. Ora, entre esses “bárbaros”, encontram-se muitas vezes etnias que foram parcial ou totalmente assimiladas e cuja cultura acaba por constituir parte integrante da civilização chinesa. Vamos lembrar apenas um exemplo, o dos Tch’u. O seu reino já se achava estabelecido por volta de r-11100. No entanto, os Tch’u, que tinham assimilado a cultura dos Chang, eram de origem mongol e a sua religião era caracterizada pelo xamanismo e pelas técnicas do êxtase. A unificação da China sob a Dinastia dos Han, embora provocasse a destruição da cultura dos Tch’u, facilitou a difusão das suas crenças e práticas religiosas através de toda a China. É provável que muitos dos seus mitos cosmológicos e das suas práticas religiosas tenham sido adotados pela cultura chinesa; quanto às suas técnicas extáticas, encontramo-las em certos círculos taoistas. (HCIR)