terra dos mortos

À guisa de ilustração, voltemos às geografias funerárias discutidas há pouco. A morfologia desses domínios fabulosos é extremamente rica e complexa. Nenhum erudito pode afirmar conhecer todos os paraísos, infernos, submundos e mundos opostos (ou antimundos) onde se localizam os mortos. Ninguém pode afirmar também que conhece as vias de acesso a essas terras fabulosas, embora possamos estar certos de que sempre haverá um rio ou uma ponte; um mar e um barca; uma árvore, uma caverna ou um precipício; um cão de guarda ou um porteiro ou psicopompo angelical ou demoníaco – apenas para mencionarmos os traços característicos mais frequentes das vias de acesso à terra-de-onde-não-mais-se-volta. Contudo, o mais interessante não é a variedade infinita dessas terras, mas, como eu já disse, o fato de que elas ainda alimentam e estimulam nossa imaginação.

Além disso, novas terras-de-onde-não-mais-se-volta e vias de acesso a elas estão sendo continuamente descobertas, em nossas fantasias e sonhos, ou por crianças, romancistas, pintores e cineastas. Pouco importa se o significado real de tais regiões e paisagens, pessoas, figuras e ações não seja sempre compreensível a quem as contemplou ou imaginou. Crianças europeias e americanas ainda brincam de amarelinha, ignorantes do fato de que estão interpretando um jogo iniciatório cuja finalidade é penetrar e regressar com sucesso de um labirinto; porque, brincando de amarelinha, elas descem simbolicamente aos infernos e voltam à terra.

Dessa forma, é importante e significativo o fato de as mitologias da morte e as geografias funerárias tornarem-se parte integrante da rotina do homem moderno. Cita-se com frequência, o provérbio francês Partir, c’est mourir un peu, mas esse não é um exemplo elucidativo. A morte não é antecipada ou simbolicamente experimentada simplesmente em ações de ir-se embora, deixar uma cidade ou um país, e outras semelhantes. Tampouco a linguagem comum, com suas imagens pitorescas de infernos, paraísos e purgatórios ou os provérbios a eles referentes conseguem exprimir os universos imaginários criados pela imaginação do homem moderno. Desde a década de 20, críticos literários têm desvendado, com sucesso, mitologias e geografias de morte em obras de ficção, drama e poesia. Historiadores de religiões podem ir mais longe e mostrar que muitos gestos e ações da vida diária estão relacionados com modalidades e níveis de morte. Qualquer imersão no escuro ou irrupção de luz fazem-nos experimentar o que seja o encontro com a morte. O mesmo pode-se dizer de experiências como praticar alpinismo, voar, mergulhar na água, ou uma longa viagem ou descoberta de um país desconhecido, ou até um encontro significativo com estranhos. Cada uma dessas experiências evoca e reatualiza uma paisagem, uma figura ou um acontecimento desses universos imaginários conhecidos através das mitologias, do folclore, dos sonhos ou das fantasias individuais. Creio ser desnecessário salientar que raramente estamos conscientes do significado simbólico dessas experiências. O importante é que, embora inconscientemente, esses significados agem de maneira latente em nossas vidas. Essa função importante deles é confirmada pelo fato de estarmos sendo sempre influenciados por esses universos imaginários, quer estejamos trabalhando ou pensando, descansando ou nos divertindo, dormindo ou sonhando ou até tentando em vão adormecer. (Eliade)

Mircea Eliade