Eu não penso que possamos desprezar essas crenças e experiências sob a alegação de que pertencem ao passado e não importam ao homem moderno. A visão científica do espaço cósmico – um espaço em que não há um centro e que é infinito – é totalmente diferente da experiência existencial de se viver num mundo conhecido e dotado de significação própria. Até mesmo entre um povo tão orientado para a história como os judeus observa-se essa estrutura cosmológica que venho discutindo. Os judeus também acreditam que Israel está localizada no centro do mundo e que a pedra fundamental do Templo de Jerusalém representa o alicerce do mundo. A rocha de Jerusalém alcançava as profundas águas subterrâneas (tehom). O Templo estava situado exatamente acima do tehom, o equivalente hebreu do babilônico apsu, as águas primordiais, preexistentes à Criação. O apsu e o tehom simbolizam o caos aquático, a modalidade pré-formal da substância cósmica, e, ao mesmo tempo, o mundo da morte, do que precede e segue à vida. A rocha de Jerusalém designa, então, o ponto de intersecção e comunicação entre o mundo inferior e a terra. Além do mais, essa imagem vertical é homologada ao espaço horizontal, uma vez que as regiões inferiores são comparáveis às regiões desérticas desconhecidas que circundam o território conhecido; ou seja, as regiões inferiores, sobre as quais está fixado o cosmos, correspondem ao caos que se estende além das fronteiras da cidade.
Em consequência, Jerusalém é o lugar da terra mais próximo do céu, o lugar que é horizontalmente o centro exato do mundo geográfico e verticalmente o elo entre o mundo superior e o inferior, o lugar onde a crosta terrestre tem a menor espessura e, consequentemente, onde as duas regiões mais se aproximam, estando o céu a apenas duas ou dezoito milhas do solo e as águas do Tehom fluindo a mil côvados do chão do Templo. Para o judeu, a viagem até Jerusalém representa a ascensão ao lugar onde se deu a Criação, a origem de tudo, o centro e a fonte da realidade, o lugar abençoado par excellence.
Por essa razão, Israel é, segundo o Rabi Nachman de Bratislava, “o centro real do espírito da vida e, consequentemente da renovação do mundo… , a fonte da alegria, a perfeição da sabedoria, … o poder restaurador e puro da terra.” O poder vital da terra e do Templo é expresso de várias maneiras, e os rabinos parecem rivalizar entre si em competições de eloquência. Assim, um texto rabínico afirma que “quando o Templo foi destruído, a graça divina abandonou o mundo” O historiador de religiões Jonathan Z. Smith interpreta a tradição rabínica do seguinte modo:
O Templo e seu ritual tem a função dos pilares cósmicos ou do “poste sagrado”, sustentando o mundo. Se o seu serviço é interrompido ou suspenso, se um erro é cometido, então o mundo, o favor divino, a fertilidade, na realidade, toda a força criativa que flui do Centro será também desfeita. À semelhança do poste sagrado dos achilpas… a desintegração do centro e de seu poder é uma ruptura entre a realidade e o mundo, que depende da Terra Santa. Seja por erro ou por exílio, uma ruptura nesse relacionamento com a terra é um desastre cósmico.
Intelectuais judeus contemporâneos, de áreas diferentes de interesse e estudo, como Chaim Raphael, David Ben-Gurion, Richard L. Rubenstein e Jonathan Smith fizeram uso de imagens cosmológicas semelhantes para exprimir o que o exílio significou para o povo judeu. Jonathan Smith escreve que “o exílio pode ser encarado como um fato cronologicamente situado no ano 70 de nossa era”, mas, na realidade, foi um evento sobretudo mítico: “o retomo ao caos, a destruição da Inação, o distanciamento com relação à divindade, um acontecimento análogo à catástrofe total do dilúvio”.19 Por outro lado, Chaim Raphael escreve que a queda de Jerusalém significou mais do que o fato histórico de os judeus serem forçados ao exílio. “O próprio Deus estava no exílio. O mundo estava desordenado. A destruição era símbolo disso”. Naturalmente, “o Deus sem pátria”, a presença de Deus exilado, são imagens previamente usadas pelo Rabi Akiba no primeiro século; mas é altamente significativo o fato de serem essas imagens tão populares até o dia de hoje. Jonathan Eibschutz, um talmudista do século dezoito, escreve: “Se não temos Jerusalém… por que devemos viver? Com certeza, viemos da vida para a morte. E o contrário é verdadeiro. Quando o Senhor conceder a liberdade a Sião, nós subiremos da morte para a vida”.
É impressionante que mesmo entre os sionistas fundadores dos primeiros kibbutzim, considerados ateus, secularistas, profundamente marxistas, sua religião de “terra e trabalho” é uma expressão nova da necessidade de se ter um centro, de um apego à vida da terra. Assim, por exemplo, A. D. Gordon, considerado por muitos como o líder dos comunitários seculares do início deste século, descreve sua experiência numa linguagem metafórica, plena de referências a árvores cósmicas, umbigos do mundo, etc. A. D. Gordon escreve: “É a vida que queremos, nem mais nem menos que isso, nossa própria vida, nutrindo-nos de nossa fonte vital, de nossos campos e sob os céus de nossa terra natal… Viemos à nossa pátria a fim de estarmos plantados em nosso solo natural do qual fornos extirpados… É nosso dever concentrar toda nossa força nesse nosso centro… O que buscamos é restabelecer na Palestina um novo povo judeu”. (Eliade)
Já demonstramos em outras partes, em particular no estudo sobre O Rei do Mundo, que a expressão “Terra Santa” tem um certo número de sinônimos: ‘Terra Pura”, ‘Terra dos Santos”, “Terra dos Bem-aventurados”, “Terra dos Viventes”, ‘Terra da Imortalidade”, e que essas designações equivalentes são encontradas nas tradições de todos os povos. Essencialmente, elas sempre se aplicam a um centro espiritual, cuja localização numa determinada região pode, segundo o caso, ser entendida literal ou simbolicamente, ou nos dois sentidos ao mesmo tempo. Toda “Terra Santa” é também designada por expressões como “Centro do Mundo” ou “Coração do Mundo”, o que exige algumas explicações, pois essas designações uniformes, ainda que diversamente aplicadas, poderiam com facilidade provocar certas confusões. (Guénon)
A conclusão que podemos extrair dessas considerações é que existem tantas “Terras Santas” particulares, quantas são as formas tradicionais regulares, pois elas representam os centros espirituais que correspondem respectivamente a essas diferentes formas. E se o mesmo simbolismo se aplica de modo uniforme a todas essas “Terras Santas”, é porque os centros espirituais têm todos uma constituição análoga, muitas vezes até em detalhes muito precisos, pois são igualmente imagens de um mesmo centro único e supremo, o verdadeiro “Centro do Mundo”, do qual recebem os atributos na medida em que participam de sua natureza por uma comunicação direta, na qual reside a ortodoxia tradicional, e que o representam na verdade, de um modo mais ou menos exterior, para tempos e lugares determinados. Em outros termos, existe uma “Terra Santa” por excelência, que é o protótipo de todas as outras e o centro espiritual ao qual todas as demais estão subordinadas; é a sede da tradição primordial da qual todas as tradições particulares derivaram para se adaptarem às condições definidas de um povo ou de uma época. Essa “Terra Santa” por excelência é o “país supremo”, segundo o sentido do termo sânscrito Paradêsha, do qual os caldeus fizeram Pordes e os ocidentais, Paraíso. É, de fato, o “Paraíso Terrestre”, ponto de partida de toda tradição, que tem em seu centro a fonte única da qual partem os quatro rios que correm para os quatro pontos cardeais, e que é também a “morada da imortalidade”, como é fácil notar se nos reportarmos aos primeiros capítulos do Gênesis. (Guénon)
Devemos agora acrescentar que o simbolismo da “Terra Santa” tem um duplo sentido: quer esteja relacionado ao Centro Supremo ou a um Centro subordinado, representa não só o próprio centro, mas também, por uma associação muito natural, a tradição que dele emana ou que por ele é conservada, ou seja, no primeiro caso a tradição primordial e, no segundo, uma certa forma tradicional particular. (Guénon)