theós: Deus
1. Como termo filosófico «o divino» (theion) é muito mais velho que a noção de um Deus personalizado. De fato, há entre os filósofos uma forte corrente de cepticismo acerca destas figuras antropomorfizadas presentes na mitologia grega (ver mythos, a bem conhecida crítica enfática de Xenófanes (frgs. 11, 15), e os comentários irônicos de Platão no Timeu 40d-e). Mesmo onde o velho aparato mitológico é usado pelos filósofos, como em Empédocles (ver frg. 6), é só para reduzir os Olímpicos a forças naturais. O vestígio mais antigo de um Deus pessoal na análise filosófica pode ver-se provavelmente na identificação, feita por Anaxágoras e Diógenes, da inteligência (nous 3) como um motivo e um «telos» na cosmologia. O nous era, evidentemente, divino (theion), e com a sua herança milésia da psyche dificilmente podia ser outra coisa; e o que lhe faltou para ser Deus estava na sua (do nous) falta óbvia de transcendência (ver Anaxágoras, frg. 14; Diógenes, frg. 5).
2. A radical distinção platônica entre o sensível (aistheton) e o inteligível (noeton) forneceu as bases para a transcendência, mas nos primeiros diálogos está ainda preso à negação parmenidiana da kinesis ao verdadeiro ser (ver on) e assim não há lugar para um Deus dinâmico no panorama estático dos eide. O grande rompimento teológico ocorre no Sofista e no Filebo; no primeiro (248e-249b) quando à alma e à inteligência é concedido um lugar no domínio do verdadeiramente existente, e no segundo (26e-30d) quando o nous cósmico é descrito como a causa eficiente do universo e identificado com Zeus. Este é indubitavelmente o demiourgos do Timeu que, quando despojado dos seus ornamentos metafóricos, é nous cósmico e cuja transcendência é consideravelmente limitada pela sua subordinação aos eide (ver nous).
3. Para além do Timeu, todavia, há outro motivo teológico: a crença na divindade dos corpos celestes (ver ouranioi). Aristóteles está ainda sob a influência deles nos seus diálogos, mas os tratados apresentam apenas dois deuses, ou antes, um Deus e uma substância divina: o Primeiro Motor como é descrito na Metafísica 1072a-1073a, e o aither (ver aphthartos) do De coelo. I, 268b-270a. A existência de ambos é deduzida da kinesis; o aither é divino porque o seu movimento é eterno (De coelo I, 268a), e o Primeiro Motor é Deus porque o seu movimento não é movido (Metafísica loc. cit.; ver nous).
4. Os epicuristas não são ateus; admitem a existência de deuses, mas negam a sua criação do mundo ou o governo da providência sobre ele (D. L. X, 123-124, 139; Lucrécio, De rerum nat. II, 649-651, V, 165-174, 1183-1197; para o papel do sonho na prova epicurista para a existência dos deuses, ver oneiros). O materialismo estoico tendia a lançar Deus para o nível de um theion milesiano (ver SVF I, 87), mas o seu monismo não era absoluto e a sua distinção entre os princípios ativos e passivos (ver paschein) permite-lhes identificar Deus como uma espécie de um elemento criador, imanente, e daí a sua definição como «fogo criativo» (pyr technikon), SVF II, 1027; D. L. VII, 156. Mas não estavam ausentes outras implicações mais espiritualizadas: Deus é também logos e nous (D. L. VII, 135; SVF I, 146). Os cínicos foram provavelmente a primeira escola filosófica a fazer um uso sistemático da exegese alegórica (allegoria) para reconciliar um monoteísmo filosoficamente derivado com um politeísmo popular (ver Antístenes na rubrica mythos), e nisto, como em muito mais, foram seguidos pelos estoicos. Mas é evidente que o princípio monístico levou ao panteísmo, tal como o movimento paralelo ao nível da religião popular estava a levar ao henoteísmo e não ao genuíno monoteísmo (ver Sêneca, De benef. IV, 7-8). Sêneca, pelo menos, deve ser excluído do panteísmo estoico (Ep. 65, 12-14) e possivelmente Cleante cujo Hino a Zeus (=SVF I, 537) não soa a um tratado panteísta.
5. Uma série de fatores conduziram ao abandono de uma divindade unificada; o materialismo monista estoico foi rejeitado e a transcendência platônica reafirmada, agora com a noção de uma hierarquia de princípios transcendentes (ver hyperousia, hypostasis). Dificuldades com a providência (pronoia) levaram também a uma distinção entre o comando e a execução e a atribuição consequente tanto das atividades criadoras (ver demiourgos) como das providências de Deus a um princípio secundário. O «segundo Deus» já é visível em Fílon, De Somn. I, 227-229, De cher., 126-127, e particularmente em Numênio (confrontar Eusébio, Praep. Evang. XI, 17, 18, 22), terminando finalmente na concepção de nous de Plotino, Enéadas V, 5, 3.
Para o «terceiro Deus», ver psyche tou pantos; para outro tratamento das várias versões da Razão Cósmica, nous. (FEPeters)
Ser sobrenatural venerado pela religião, que passou em seguida à filosofia para explicar a ordem da natureza, o curso dos acontecimentos ou o destino humano.
É difícil deslindar, nos autores gregos, monoteísmo e politeísmo. Os únicos que afirmam um Deus único, primeiro, absoluto e espiritual são Pitágoras, Aristóteles e Proclos. No entanto, Pitágoras e Aristóteles falam de seres secundários de natureza divina que são deuses. Anaxágoras fala de um espírito primeiro ordenador (nous / Noûs), mas nenhum fragmento ou testemunho diz que se trata de Deus. Platão dá à divindade vários rostos; Plotino de fato afirma que o Uno é Deus, mas também hypertheos / Hypértheos, logo Deus superior além do nous (Noûs), que procede dele e compartilha de algum modo a divindade com ele; mantém os deuses secundários, tal como, aliás, Porfírio e Jâmblico. Encontra outros termos para designar as divindades secundárias: daimon / daímon (ho); demiourgos / demiourgós (ho): espírito criador; e, para o divino em geral: theíon.
Deus (ho theós). A doxografia de Tales nos deixa perplexos no que se refere à teologia. Diz ele: “De todos os seres, o mais antigo é Deus, pois não foi engendrado” (D.L., I, 35). Mas o que é esse Deus? Um espírito ordenador, decerto, pois, como diz Cícero, é uma mens que extrai todas as coisas da água (De nat. deor, 1,10); e a divindade (Divindade – to theion / tò theíon) é “um ser sem começo nem fim” (D.L., I, 36). Mas Aécio (I,VII, 11) diz que ele é a inteligência do mundo, o que nos remete ao panteísmo. O mundo está cheio de espíritos: daímones (D.L., I, 27); mas, em vez de serem impessoais, os deuses vêem não só as ações dos homens, como também seus pensamentos (ibid., I, 36). E verdade que, como entre os babilônios, pelos quais Tales é influenciado, demônios e deuses provavelmente são espíritos diferentes.
Em Diógenes de Apolônia, o panteísmo é evidente: Deus possui a onipotência e a onipresença, mas é idêntico ao ar (fr. 5). Encontra-se identificação semelhante em Anaxímenes (Cícero, De nat. deor., I, 10). O mesmo ocorre em Heráclito, onde ele assume natureza espiritual: ele é o logos / Lógos (a Razão, que penetra a substância do Todo) (Aécio, I, XXVIII, 1). Nós mesmos, se pensamos e conhecemos, é por participação do logos / Lógos (Sexto Empírico, Adv. math.,VW, 134). Esse Lógos (logos) é explicitamente identificado com Deus (fr. 31) e qualificado como deus (fr. 50).
Em Pitágoras, “Deus é espírito: nous / noûs” (Aécio, I, III, 8). Ele é idêntico ao Uno e ao Bem (ibid.,VW, 17). É objeto de prece; podemos até unir-nos a ele, pois essa é a finalidade da filosofia (Jâmblico, Vida de Pitágoras, 175, 137), cujo primeiro preceito é de “seguir Deus” (Estobeu, Éd.,Vl, 3). Filolau afirma que há um Reitor e mestre de todas as coisas; é Deus, Uno, eternamente existente, imutável, imóvel, idêntico a si mesmo, diferente do resto” (Fílon de Alexandria, Criação do mundo, 23). Para Arquitas, há três princípios: Deus, que é o formador e motor do universo; substância, que é sua matéria, móvel, e forma, que é a ação de Deus sobre a substância (Estobeu, Écl, I, 35). E esse Deus que põe a razão no homem (Jâmblico, Protréptico, 4, num texto extraído do tratado Da sabedoria, de Arquitas). Empédocles, influenciado pelos pitagóricos, zomba do antropomorfismo teológico: “Deus não tem corpo (…) ele é unicamente um espírito venerável, de uma potência inefável cujo pensamento percorre o universo” (Purificações, 134).
Antes de Arquitas e Empédocles, o caso de Xenófanes é absolutamente típico do caráter indeciso que os filósofos itálicos atribuem à Divindade. Clemente de Alexandria (Strom., V, XIV, 109) afirma que Xenófanes de Colofão ensina que “Deus é único e incorpóreo”. E cita dois de seus versos:
Há um Deus único, o maior entre os deuses e os homens,
Que não se assemelha aos mortais nem em corpo, nem em pensamento.
Outros dois versos fazem parte do mesmo poema: um é citado por Sexto Empírico (Adv. math., IX, 144), por Diógenes Laércio (IX, 19) e pelo Pseudo-Plutarco (Eusébio de Cesareia, Preparação evangélica, I, 23):
Por inteiro ele vê, por inteiro ele pensa, por inteiro ele entende.
O outro é citado por Simplício (Comentário à Física de Aristóteles, fr. 6):
E sem esforço ele move todas as coisas pelo pensamento de seu espírito.
Teísmo ou panteísmo? “Xenófanes”, conforme escreve Aristóteles, “afirma que o Uno é Deus” (Met.,A, 5). Esse Deus único governa o mundo do interior ou do alto de sua transcendência? Interpretou-se nos dois sentidos, sem fechar a questão. Mas Tímon, o cético, decide-se a favor da transcendência: “Xenófanes imaginou um Deus afastado dos homens (…) imutável, inteligência e espírito” (Sexto Empírico, Hypot., I, XXXIII, 224). Sócrates faz a mesma pergunta. Segundo Xenofonte (Mem., I, IV, 13-18), ele ensinava que Deus não só deu ao corpo humano uma conformação admirável, como também lhe conferiu a alma mais perfeita. No entanto, um pouco adiante, chama esse mesmo Deus de “inteligência (phronesis / phrónesis) que está no universo”, depois fala dele no neutro: é a Divindade (to theion / tò theion).
Platão move-se na mesma incerteza. No livro II da República (379a-c), fala de Deus no singular e até como uma pessoa: ele é bom e não autor dos males. Além disso, ele é absolutamente perfeito e incapaz de nos enganar (381b-c; Teeteto, 176b-c). Ora, no livro IV das Leis (716c), Platão escreve que Deus deve ser “a medida de todas as coisas”. E o ateniense, um pouco acima, afirma que “Deus detém, segundo antigas palavras, o começo, o fim e o meio de todos os seres”. Quais são essas antigas palavras? É um verso de um poema órfico’, que põe em cena Zeus, que recriou o universo criado uma primeira vez por Fanes e, como arquiteto do universo, realizou seu trabalho com medida. Esse Deus é, portanto, o deus do Timeu (29a-31b), o Demiurgo, que não é um espírito absoluto, pois fabrica o mundo graças a dois princípios preexistentes: uma matéria informe e um Modelo eterno (paradeigma / parádeigma).
Aristóteles, no livro A da Metafísica, confere a Deus a natureza mais grandiosa, ao mesmo tempo a mais rigorosa, que foi definida desde o início da história da filosofia. Ele é o Princípio absoluto, Motor (kinoun / kinoûn) não movido, substância eterna, e Ato puro (energeia ousa / enérgeia oûsa). Ele é o Bem em si e o Desejável em si, causa final e necessária, Pensamento (noesis / nóesis) que se pensa a si mesmo, beatitude perfeita (VII, 1072a-b, IX). Ora, nessa solidão espiritual, ele ignora o universo que ele mesmo move, bem como o homem, de quem ele é a Finalidade.
Ao contrário de Aristóteles, os estoicos professam um panteísmo absoluto. O universo, sendo uma Realidade racional, perfeita e necessária, é Deus. Deus é “a reta razão em toda parte disseminada” e “intimamente misturada à Natureza” (D.L.,VII, 88,147). Para Crisipo, Antípatro e Posidônio, Deus é “uma força inteligente e divina disseminada no mundo” (Cícero, De divinatione, I, 14). Para Marco Aurélio (VIII, 9), ele é “a unidade resultante do conjunto”.
Em Plotino, Deus é o Uno e o Bem, que constituem com um mesmo nome a primeira Hipóstase. Portanto, ele é a absoluta transcendência, estando para além do ser hyperontos / hyperóntos, VI,VIII, 14; epekeina ontos / epékeina óntos, V, I, 10; V,V, 6) e além do inteligível (III,VII, 2); ele é o Único, além de tudo aquilo que são os seres, e, sendo superabundante, não precisa de nada que não seja ele (V, I, 6-7). Mas, ao mesmo tempo, ele é em absoluto tudo o que são os seres por ele produzidos. Ele é Vontade (VI, VIII, 21) e Vontade de Ser (VI, VIII, 16); é Pensamento (noesis / nóesis) e Pensamento de si mesmo (VI, VII, 37); é Amor e Amor de si mesmo (VI, VIII, 15). Por isso, nosso destino é tornar-nos semelhantes a ele (I ,2-3). Em Hermes Trismegisto, Deus é o primeiro Espírito, Pai de todos os seres, que é Vida e Luz (Poimandres, I, 12), mas de modo absolutamente dessemelhante de tudo o que ele produz (ibid., II, 14). (Gobry)
Além da aparente segurança e da equivocada comodidade que possa ter para nós a tradução da palavra grega Theós por «Deus», como deveríamos e poderíamos entender afinal a noção mítica grega arcaica de Theós? Supor que conhecemos o que deveras não conhecemos permanece para nós uma grande fonte de equívocos, como nos tem mostrado sobejamente a obra de insignes helenistas. A simples substituição, que traduz a palavra grega Theós pela portuguesa «Deus», ainda que não disponhamos de melhor recurso para traduzi-la, não nos garante que tenhamos logrado compreender essa noção fundamental do pensamento mítico grego. E mais ainda: temos fortes motivos para supor que essa noção fundamental de Theós estivesse já para os gregos antigos cercada de aporias, e constituísse já por si mesma, independentemente de quaisquer traduções, uma fonte inesgotável de equívocos.
No entanto, os gregos antigos, tão serenos em sua prístina sabedoria ou tão frenéticos em seu entusiasmo, não nos parecem nem um pouco desespera-dos de entender o que fosse essa misteriosa e esquiva noção fundamental de Theós; ao contrário, por ser uma noção fundamental, o entendimento de tudo o mais dependia antes de se ter entendido o que fosse essa noção mítica. E nós, separados e distantes dos gregos antigos por tantas camadas de pó e de palavras, que expectativa ainda poderíamos ter de lograrmos hoje a compreensão clara dessa esquiva, ainda que fundamental, noção? (Jaa Torrano)