—Fala de tradição, de transmissão. Escreveria a palavra tradição com maiúscula? sente-se perto, neste ponto, de um Guénon, de um Abellio?
—Li René Gueéon muito tarde e alguns de seus livros interessaram-ME muito, concretamente L’Homme et son devenir selon le Vedanta, que ME pareceu muito belo, inteligente e profundo. Mas, havia ao mesmo tempo um aspecto de Guénon que ME desgostava, seu lado exageradamente polêmico, assim como sua repulsa brutal de toda a cultura ocidental moderna, como se bastasse ensinar em Sorbona para perder toda oportunidade de chegar a entender algo. Tampouco eu gostava de seu desprezo obtuso para certas obras da literatura e da arte modernas. Nem o complexo de superioridade que lhe levava a acreditar, por exemplo, que não é possível entender Dante a não ser na perspectiva da «tradição», mais exatamente a de René Guénon. Mas resulta que Dante é um grande poeta, evidentemente, e para lhe entender terá que amar a poesia e, sobretudo, conhecer a fundo seu imenso universo poético. Quanto à tradição, ou à Tradição, o tema é ao mesmo tempo complexo e delicado; nem sequer ME atrevo a abordá-lo no marco de uma conversação despreocupada e de caráter geral, como esta que mantemos. Na linguagem corrente, o termo «tradição» emprega-se em contextos múltiplos e heterogêneos; refere-se à umas estruturas sociais e uns sistemas econômicos, uns comportamentos humanos e umas concepções morais; umas opções teológicas, umas posturas filosóficas, umas orientações científicas e à outras muitas coisas. «Objetivamente», quer dizer sobre a base dos documentos de que dispõe o historiador das religiões, todas as culturas arcaicas e orientais, igualmente todas as sociedades, urbanas ou rurais, estruturadas por uma das religiões reveladas —judaísmo, cristianismo, Islã— são «tradicionais». Com efeito, todas elas consideram-se depositária de uma traditio, de uma, «história sagrada» que constitui uma explicação total do mundo e a justificação da condição humana atual, e que, por outra parte, considera-se a soma dos modelos exemplares das condutas e das atividades humanas. Todos estes modelos consideram-se de origem trans-humano ou de inspiração divina. Mas, na maior parte das sociedades tradicionais, certos ensinos são esotéricos e, como tais, transmitem-se no curso de uma iniciação. Entretanto, em nossos dias, o termo «tradição» designa com muita frequência o «esoterismo», o ensino secreto. Em consequência, quem se declare adepto da «tradição» dá a entender que foi «iniciado», que é possuidor de um «ensino secreto». E isto é, no melhor dos casos, uma ilusão. (Mircea Eliade)