verdade

VIDE gr. aletheia

A verdade implica uma ordem do ser à inteligência; mas esta ordem pode ser considerada ou enquanto subjeitada principalmente na inteligência, ou enquanto qualificando diretamente o ser. Consideremos, de início, com Aristóteles, a verdade na inteligência. Diremos que a inteligência é verdadeira quando, em seu ato, é conforme ao ser, ao que é: um conhecimento verdadeiro é um conhecimento que está em relação de conformidade com seu objeto: assim entendida, a verdade poderia ser definida: adaequatio intellectus ad rem, a conformidade da inteligência à coisa. Se, inversamente, nos colocamos no ponto de vista objetivo, deveremos dizer que o ser é verdadeiro na medida em que é conforme à inteligência; a verdade será então: adaequatio rei ad intellectum. Uma e outra destas fórmulas necessitam ser precisadas. (Gardeil)


A verdade é a razão de ser do homem; ela constitui nossa grandeza, e nos mostra nossa pequenez.


Não há grandeza real fora da verdade.


Se queremos que a verdade viva em nós, devemos viver nela.


Verdade e santidade: todos os valores estão nestes dois termos; tudo o que devemos amar e tudo o que devemos ser.


É necessária a verdade para a perfeição da virtude, como é necessária a virtude para a perfeição da verdade.


Não poderíamos afirmar com bastante clareza que uma formulação doutrinal é perfeita, não porque esgota no plano da lógica a Verdade infinita, o que é impossível, senão porque realiza uma forma mental capaz de comunicar, a quem é intelectualmente apto para recebê-lo, um raio desta Verdade, e com ele uma virtualidade da Verdade total; isto é o que explica porque as doutrinas tradicionais serão sempre aparentemente ingênuas, pelo menos desde o ponto de vista dos filósofos – quer dizer, dos homens que não compreendem que o fim e a razão suficiente da sabedoria não se situam no plano de sua afirmação formal; que não há, por definição, nenhuma medida comum nem nenhuma continuidade entre o pensamento, cujas evoluções não tem, em definitivo, mais que um valor simbólico, e a Verdade pura, que se identifica ao que é e que por isto engloba ao que pensa. (Schuon PP)


O vocábulo verdade é usado primariamente em dois sentidos: para se referir a uma proposição e para se referir a uma realidade. No primeiro caso diz-se que uma proposição que é verdadeira diferentemente de falsa. No segundo caso, diz-se que uma realidade é verdadeira diferentemente de aparente, ilusória, irreal, inexistente, etc. Nem sempre é fácil distinguir entre estes dois sentidos de verdade , porque uma proposição verdadeira refere-se a uma realidade e de uma realidade diz-se que é verdadeira. Mas pode destacar-se um aspecto da verdade sobre o outro. Foi o que aconteceu na ideia de verdade que predominou nos começos da filosofia. Os filósofos gregos começaram por procurar a verdade face à falsidade, a ilusão, a aparência, etc. A verdade era neste caso idêntica à realidade, e esta era considerada como idêntica à permanência ao que é. Os gregos não se ocuparam apenas da verdade como realidade. Ocuparam-se também da verdade como propriedade de certos enunciados dos quais se diz que são verdadeiros. Embora antes de Aristóteles já se tivesse concebido a verdade como propriedade de certos enunciados, a mais celebrada fórmula a este respeito é a que se encontra em Aristóteles: “dizer do que é que não é, ou do que não é que é, é o falso: dizer do que é que é e do que não é que não é, é o verdadeiro”. Aristóteles exprimiu pela primeira vez limpidamente o que logo se chamará concepção lógica, e que seria mais adequado chamar-se concepção semântica, da verdade: portanto, não há verdade sem enunciado. Em rigor, não há enunciado como tal, pois o enunciado é-o sempre de algo. Parta que um enunciado seja verdadeiro é necessário que haja algo do qual se afirme que é verdade: não há coisa não há verdade, mas tão pouco há só com a coisa. Esta relação do enunciado com a coisa enunciada foi logo chamada correspondência ou adequação; a verdade é verdade do enunciado enquanto corresponde com algo que se adequa ao enunciado.

Os autores para quem a proposição é fundamentalmente uma série de signos sustentaram que a verdade é a conjunção ou separação de signos — por exemplo, a conjunção do signo ouro com o signo amarelo ou a separação do signo ouro do signo verde, o que dá as proposições consideradas verdadeiras: O ouro é amarelo, o ouro não é verde. É uma concepção da verdade que pode chamar-se, conforme os casos, nominal ou literal, se a verdade reside pura e simplesmente no modo como se encontram unidos ou separados certos signos, o fato de uma série de signos ser declarada verdadeira e outra falsa dependerá unicamente dos próprios signos. Ora o signo pode ser considerado como a expressão física de um conceito mental, o qual pode ser considerado como manifestação de um conceito formal, o qual pode ser considerado como apontando para uma coisa, para uma situação, para um fato, etc. A verdade aparece então como conveniência de signos com signos, de pensamentos com pensamentos, de conceitos com conceitos e de realidades com realidades, e por sua vez como adequação de uma série dada de signos, pensamentos e conceitos, com um fato real. Os escolásticos trataram comummente de conjugar estes diversos modos de entender a verdade. A verdade é, para já, uma propriedade transcendental, do ente e que é convertível com o ente. A verdade como verdade transcendental, também às vezes chamada verdade metafísica e logo verdade ontológica, é definida como a conformidade ou conveniência do ente com a mente, pois o verum como um dos transcendentais é a relação do ente com o intelecto. Isto pressupõe que o ente é inteligível, já que de contrário não poderia haver a conformidade mentada…. Mas a verdade pode ser entendida como a conformidade da mente com a coisa, ou adequação da mente com a coisa. Este tipo de verdade chamou-se verdade lógica. Uma vez que esta pode ser entendida ou como conhecimento ou como união do juízo com o julgado, distinguiu-se entre uma verdade gnoseológica e uma propriamente lógica. A verdade transcendental é o verdadeiro como realidade: a verdade gnoseológica é a verdade enquanto se encontra no intelecto; a verdade lógica é a verdade enquanto adequação do enunciado com a coisa; a verdade que pode chamar-se nominal é a conformidade de um signo com outro. Na época moderna persistiram as anteriores concepções da verdade. Mas o interessante, e novo, nas concepções modernas da verdade foram os desenvolvimentos do que pode chamar-se concepção idealista. Tem-se dito por vezes que esta concepção que se carateriza por entender a verdade como verdade lógica, e tem-se aduzido a tal efeito que ao reduzir-se todo o ser a conteúdo de pensamento, a verdade terá que fundamentar-se no próprio pensamento e, portanto, nas suas leis formais. Mas isto não corresponde necessariamente às concepções idealistas, mas antes às chamadas racionalizada.. Além disso, deve ter-se em conta que semelhante concepção da verdade é lógica só porque é ontológica e vice-versa. Se o pensamento é pensamento da realidade, a verdade do pensamento será a mesma que a verdade da realidade, mas também a verdade da realidade será a mesma que a do pensamento — a ordem e conexão das ideias serão, como dizia Espinosa, as mesmas que a ordem e conexão das coisas. Quando não se mantém com completo radicalismo esta concepção simultaneamente lógica e ontológica, o problema para os autores racionalistas é como conjugar as verdades racionais com as verdades empíricas. O que chamamos concepções idealistas modernas difere das estritamente racionalistas, e também das predominantemente empiristas, para as quais as verdades são fundamentalmente verdades de fato. Para compreender a concepção idealista de verdade podemos referirmos antes de tudo a Kant, quando fala da verdade como verdade transcendental — no sentido kantiano de transcendental. Se o objeto do conhecimento é a matéria da experiência ordenada pelas categorias, a adequação entre o entendimento e a coisa encontrar-se-á na conformidade entre o entendimento e as categorias do entendimento. A verdade é então primordialmente verdade do conhecimento, coincidente com a verdade do ser conhecido. Pois se há efetivamente coisas em si, estas são inacessíveis e, portanto, não pode falar-se de outro conhecimento verdadeiro senão do conhecimento da referida conformidade transcendental. Hegel tenta, em contrapartida, a partir do idealismo, chegar até à verdade absoluta, por ele chamada a verdade filosófica. A verdade é matemática ou formal quando se reduz ao princípio de contradição; é Histórica ou concreta, quando se concerne à existência singular, quer dizer, às determinações não necessárias do conteúdo desta existência. Mas é verdade filosófica ou absoluta quando se opera uma síntese do formal com o concreto, do matemático com o histórico. Assim o falso e o negativo existem, não como um momento da verdade, mas como uma existência separada que fica anulada e absorvida quando com o porvir do verdadeiro, se atinge a ideia absoluta da verdade em e para si mesma. A Fenomenologia do Espírito é deste modo a preparação para a lógica como ciência do verdadeiro na forma do verdadeiro. A verdade absoluta é a própria filosofia , o sistema da filosofia. É próprio do conceito de verdade, sustentado por Hegel, o fato de a verdade ser, enquanto ontológica, uma totalidade indizível, sobre a qual se destaca qualquer enunciado parcial do verdadeiro ou da sua negação: o fato, em suma, de “todo o verdadeiro ser o todo”. Alguns filósofos da época atual volta-se em parte à teoria escolástica e procura-se novamente a verdade na coincidência do intelecto com a coisa. Mas esta adequação não é entidade no sentido do realismo ingênuo, mas como o resultado de uma investigação que tem em conta as dificuldades que havia destacado o idealismo. A indagação da verdade, realizada por Husserl no prolongamento do estudo das relações entre a verdade e a evidência, conduz ao conceito de verdade como uma situação objetiva — enquanto correlato de um ato identificador — e a uma identidade ou plena concordância entre o pensado e o dado como tal — enquanto correlato de uma identificação de coincidência —, mas este conceito refere-se ao objetivo, ao passo que nas relações ideais entre as essências significativas dos atos coincidentes é preciso entender a verdade como a ideia correspondente à forma do ato, quer dizer, a ideia de adequação absoluta como tal. Num terceiro sentido, a verdade pode ser designada como o viver na evidência o objeto dado, no modo do objeto pensado, e, finalmente, do ponto de vista da intenção, a verdade é o resultado da apreensão da relação da evidência. Heidegger nega que a verdade seja primariamente a adequação do intelecto com a coisa e sustenta, de acordo com o primitivo significado grego, que a verdade é a descoberta. A verdade fica convertida num elemento da existência, a qual encobre o ser no seu estado de degradação e o descobre no seu estado de autenticidade. A verdade como descoberta pode darse só no fenômeno de estar no mundo próprio da existências e nele radica o fundamento do fenômeno originário da verdade. Da descoberta do velado é assim uma das formas de ser do estar no mundo. Mas a descoberta é não só o descobrir mas também o descoberto. A é, num sentido originário, a revelação da existência a que pertence primitivamente tanto a verdade como a falsidade. Por isso se descobre a verdade unicamente quando a existência se revela a si mesma enquanto maneira de ser própria. E toda a verdade não é verdadeira enquanto não tiver sido descoberta. Por isso, há verdade só na medida em que há existência, e ser unicamente na medida em que há verdade. Uma certa parte da filosofia contemporânea vai-se aproximando, por conseguinte, de uma noção de verdade que, sem dar num completo irracionalismo, procura solucionar ou evitar os conflitos que o intelectualismo tradicional tinha suscitado…. Irrompem na área da filosofia toda a espécie de correntes e tendências que, apesar das suas consideráveis discrepâncias mútuas, coincidem em subtrair a verdade da esfera meramente intelectual em que até então havia respirado. quando o William James sustenta resolutamente que a verdade considerada como abstratamente é algo inexistente, que só verdade o verdadeiro, por outras palavras, só há coisas verdadeiras que são ao mesmo tempo princípios práticos e que se confirmam como verdades pela sua consequência, exprime com todo o vigora primária vitalização da verdade e a tendência para o concreto típico de uma parte do pensamento contemporâneo. Mas não é lícito reduzir tais concepções a uma doutrina utilitária ou arbitrária. Em primeiro lugar, o útil para a vida pode ser entendido de maneiras muito diferentes, e o fato de, embora numa concepção neste sentido tão radical como a de William James, se ter entendido como o que para a vida é eticamente bom, alude já a uma decidida supressão de todo o utilitarismo tosco. A verdade torna-se assim, não uma adequação da vida à sua satisfação, mas de toda a noção, de todo o ato ao bem. A verdade é, por conseguinte, uma forma ou espécie do bem; o juízo de existência é ao mesmo tempo um juízo de valor. Por isso as “consequências práticas” de que fala William James não são apenas utilitárias, mas também mentais e teóricas. A única diferença entre u m pragmatismo e um antipragmatismo no problema da verdade, radica apenas, diz James, no fato de que “todos os pragmatistas falam de verdade se referem exclusivamente a algo acerca das ideias, quer dizer, a sua praticabilidade ou possibilidade de funcionamento, ao passo que quando os antipragmatistas falam da verdade querem dizer frequentemente algo acerca dos objetos”. O pensamento atual busca por diversos caminhos uma noção de verdade que, superando o relativismo e o utilitarismo manifestados nas primeiras reações contra a abstração, valha por sua vez como absoluta.

Assim tem lugar sobretudo em quem, como Ortega y Gasset, chega a fazer da verdade uma coincidência do homem consigo mesmo. Ortega examina por que razão se fá por hipótese que há um ser ou verdade das coisas que o homem parece ter que averiguar, até ao ponto de o homem ter sido definido como o ser que se ocupa de conhecer o ser das coisas ou, por outras palavras, o animal racional que faz funcionar a sua razão pelo mero fato de a possuir. O homem necessita de justificar porque razão nalgumas ocasiões se dedica a averiguar o ser das coisas. Tal averiguação não pode proceder simplesmente de uma curiosidade. Pelo contrário, enquanto a filosofia tradicional afirmava que o homem é curioso e fazia assim descer a ciência ao nível de uma inclinação, o pensamento atual, que nega a suposta intelectualidade essencial do homem, sustenta que este se vê obrigado a conhecer, porque o conhecimento é o ato que o salva do naufrágio da existência. O saber converte-se, deste modo, em saber a que se ater. Daí que seja errôneo, segundo o referido pensador, supor sem mais que as coisas possuem um ser e que o homem tem de descobri-lo; o certo é que as coisas não têm por si mesmas um ser e por isso, para não se ver perdido, o homem tem de o inventar. O ser é, por conseguinte, o que há que fazer. Mas então a verdade não será simplesmente a tradicional adequação entre ser e pensar. verdade será aquilo sobre o qual o homem saberá a que se ater, o pôr a claro consigo mesmo em relação ao que crê das coisas. A maior parte das teorias da verdade expostas até aqui, em particular as dos dois últimos parágrafos, podem ser consideradas como doutrinas metafísicas. Na época contemporânea, os lógicos apresentaram um conceito de verdade chamado conceito semântico. Segundo este conceito, a expressão “é verdade” (assim como a expressão “é falso”) é um predicado metalógico. Isto significa que uma definição adequada da verdade tem de ser dada numa metalinguagem. Esta metalinguagem deve conter as expressões da linguagem acerca da qual se fala. O que se trata de fazer é construir uma definição objetivamente justificada, concludente e formalmente correta, do termo “proposição verdadeira”, isto requer, além de uma demonstração das ambiguidades adscritas à linguagem conversacional, uma análise do conceito de verdade, ou melhor dizendo, da definição de “proposição verdadeira”. Em geral, será conveniente indicar em que linguagem se diz de um enunciado que é verdadeiro, com a condição, antes apontada, de que tal linguagem (ou, melhor, metalinguagem) não seja da mesma ordem da linguagem da qual se diz que é verdadeira, mas de ordem imediatamente superior. O conceito semântico de verdade está no bicondicional…. P é verdadeiro se e só p um de cujos elementos pode ser: “a neve é branca” se e só se a neve é branca. A concepção semântica da verdade tem sido objeto de variadas críticas. Podem ser classificadas em dois grupos: filosóficas e analíticas. filosóficas e analíticas. As primeiras arruem que a concepção semântica da verdade não resolve o problema filosófico da verdade no sentido em que tem sido tradicionalmente entendido, ou não têm em conta os supostos que subjazem em toda a concepção semântica. A isto pode responder-se que a concepção semântica não tenta dar tal solução nem averiguar tais supostos; trata-se apenas de conseguir uma definição do já citado predicado metalógico. As segundas proclamam que o conceito semântico de verdade, embora muito útil para a construção de linguagens artificiais, oferece dificuldades ao aplicá-lo às linguagens naturais. Em face de tais críticas, os lógicos arruem que o conceito semântico de verdade se constrói para as linguagens formalizadas e que, por conseguinte, as objecções em nome dos usos da linguagem ordinária não fazem mossa em tal conceito. Desvia-se dos usos ordinários de “é verdadeiro” e “é falso”; não é, portanto, um inconveniente, mas o resultado de um propósito. Por consequência, não importa nada, segundo tais lógicos, que a concepção semântica da verdade não proporcione nenhuma definição geral da verdade, mas apenas um critério de validade. Parece impossível reduzir a um denominador comum todos os conceitos de verdade até aqui apresentados. Em geral pode dizer-se que os problemas acerca do conceito filosófico de verdade surgem quando não se tem suficientemente em conta a distinção entre o que é verdade e o que é a verdade. O último é um tema metafísico; o primeiro, um tema epistemológico. A verdade metafísica requer, para ser compreendida, uma prévia teoria do ser. A verdade epistemológica requer uma teoria da conformidade. O problema da verdade como verdade epistemológica consiste nos diferentes sentidos em que pode ser entendida tal conformidade. E embora estes sentidos sejam muito diversos, há sempre algo de comum neles: a existência de uma relação subjetiva a leis entre a expressão verdadeira e a situação à qual se refere. Dentro destes limites comuns podem colocar-se tanto as doutrinas antigas como muitas das teorias modernas acerca da noção de verdade. (WebDic)

Frithjof Schuon