Uma nova humanidade na obra de Hermann Hesse

(Deghaye2000)

O projeto de uma nova humanidade é antigo na obra de Hesse. Está ligado ao declínio da humanidade presente que Hesse personifica quando fala da Europa. Para ele, a humanidade não é um coletivo, é sempre uma pessoa. O mesmo se aplica à Europa. É essa pessoa que morre e renasce.

Em um artigo de 1920, Hesse fala de uma doente que é a Europa. A psicanálise mostra que essa velha Europa, cuja cultura desmoronou, é uma grande neurótica: ein schwerkranker Neurotiker. Eis, portanto, a característica da idade má, a quarta idade, no plano do psiquismo: a neurose.

Em dois estudos sobre Dostoiévski, publicados em 1919, Hesse mostra como essa neurose pode levar a uma renovação. Um deles se intitula ‘Os Irmãos Karamazov ou o fim da Europa’, o outro ‘Reflexões sobre “O Idiota” de Dostoiévski’.

No primeiro desses escritos, a Europa é, antes de tudo, um tipo de homem que deve morrer. Será também um novo tipo de homem. Mas para que o velho homem, o de nossa cultura ocidental, morra de verdade, é preciso que ele seja engolido por uma espécie de monstro que é o homem de Dostoiévski, o homem russo: der russische Mensch.

O homem russo é o perigo que vem do Leste. Esse perigo reaparecerá no final da biografia de Knecht. O homem de Dostoiévski é um perigo para a Europa devido ao fascínio que exerce sobre os europeus. É ele quem fará a Europa explodir. É o homem do fim, contemporâneo dessa música de que falavam os velhos chineses: der Mensch des Untergangs.

Esse asiático faz explodir nosso velho mundo com sua cultura e moral. No entanto, anuncia o novo tempo. É por isso que Dostoiévski é um profeta. O fim da Europa é seu renascimento. Na terra, diz Hesse, toda morte leva a um novo nascimento.

O homem russo de Dostoiévski não é ele mesmo o homem novo. É o homem do fim. Falamos da dissolução do mundo. O asiático de Dostoiévski é o homem que está em vias de dissolução: im Begriff, sich aufzulösen. Esse homem voltou ao estado de materia prima: ist wieder Urstoff. Em suma, simboliza o retorno ao caos primordial.

O caos é a indistinção original. No caos, não pode haver nem bem nem mal. Mas aos olhos do europeu polido que raciocina em função de uma moral, o caos é o Mal, é o reino de Satanás. Ora, em termos de psicologia das profundezas, o caos é o inconsciente. Segundo Hesse, o diabo com quem Ivan Karamazov se explica é o inconsciente.

A neurose dos personagens de Dostoiévski é uma doença fecunda. Faz ressurgir forças que a civilização, a cultura e a moral mantiveram à margem. Essas forças se libertam porque os valores nos quais se sublimaram morreram. Libertadas, são assustadoras para aqueles que as ignoravam, acreditando-as definitivamente vencidas como a barbárie das primeiras eras. Revestem o aspecto da besta que se escondia em nós. Mas é preciso ter a coragem de encará-las, pois são elas que podem produzir uma nova vida. É a partir delas que poderão se edificar uma nova civilização, uma nova cultura, uma nova moral. Elas assustam o burguês, mas o espírito lúcido deve aceitar confrontá-las.

É preciso aceitar o caos, diz Hesse. O caos é a Mãe que nos renasce. A Ásia é a Mãe da humanidade. A busca da Mãe é um tema importante da obra de Hesse e que se relaciona diretamente com a psicologia das profundezas.

[…]

Os homens que aspiram à renovação devem mergulhar em um mundo onde o mal se confunde com o bem. Esse universo é o dos heróis de Dostoiévski. Assusta o burguês para quem essa confusão é obra de Satanás. No entanto, Hesse destaca que os Karamazov não são criminosos em atos. Os Karamazov são inocentes. O único criminoso é o procurador, que representa os burgueses. Assim, a perversidade da idade má, que é a do burguês, se resolve na perfeita inocência do caos.

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