Alan Watts — Tabu
Excertos da trad. de Olavo de Carvalho
SEMEAR O GRÃO, COLHER O FRUTO
Todo desejo de transformação de si mesmo mostra-se um círculo vicioso. Um mestre zen do século 13, Dogen, dizia que a primavera não se torna verão, a lenha não se torna cinzas: há a primavera, há o verão, há a lenha e há as cinzas. Segundo esse raciocínio, o ser vivo não se torna cadáver, o não-desperto não se torna Buda. Segunda não se torna terça-feira; uma hora não se torna quatro horas. Assim, é tão difícil tornar-se Buda, alcançar o despertar, a libertação, a abnegação suprema, quanto eliminar uma mancha de sangue lavando-a numa bacia de sangue, ou polir um ladrilho para fazer um espelho. Tchuang-tseu disse: “Este ovo em vossa mão, para vós, já faz cocoricó.”
O egoísmo do egoísta consiste precisamente no fato de ele tentar ser mais feliz, mais forte, mais sábio, mais corajoso, mais benevolente; logo, não-egoísta. “Vossa eliminação do eu”, disse Tchuang-tseu, “não é uma manifestação positiva do eu?” Ou ainda: “Aqueles que dizem querer a justiça sem seu correlativo, a injustiça, ou a ordem sem seu correlativo, a desordem, não entendem os grandes princípios do universo, nem a essência de toda a criação. O mesmo acontece ao se falar da existência do céu sem a da terra, ou do princípio negativo (y/n) sem o positivo (yang), o que é, evidentemente, impossível. E, portanto, discute-se incessantemente”. Esta observação pode ser aplicada a todos os esforços de auto-melhoria empreendidos com o auxílio de gurus, de meditações, da prática da ioga, da aceitação de si, da psicoterapia, e mesmo da existência conduzida totalmente no momento presente. Tudo que se aprende é que tais disciplinas contêm em si mesmas sua própria contradição, tanto quanto tentar se elevar do solo apoiando-se nos tornozelos. E essa descoberta pode ter seu lado bom, pois nossa energia psíquica e física se encontra, assim, liberada de tarefas impossíveis para poder se concentrar apenas no possível: poderemos então semear os grãos, colher os frutos, construir casas, cantar canções, fazer amor, e viver até que a morte nos interrompa.
E eu chamo a atenção sobre esse ponto para melhorar a sorte da humanidade? Estaria então em contradição comigo mesmo. Digo-o mais para que nos permitamos semear os grãos e colher os frutos, em toda liberdade. Nada a fazer quanto ao que seja melhor ou pior, progresso ou recuo. Esses são juízos de valor e disse-se bem: “Não julgueis, para que não sejais julgados. Pois sereis julgados do julgamento de que julgais e medir-vos-ão com a medida com que medis”. E se se disser agora: “Mas isso também é um julgamento!” — ainda assim se elabora um outro julgamento. É melhor não julgar? Não, trata-se apenas •de viver e morrer, dia e noite, de ir e vir, um estado de coisas onde o mal e o bem não podem ser isolados.
A Via perfeita não tem dificuldade. Apenas evita escolher e selecionar.
Somente quando tudo deixar de vos agradar e desagradar, é que compreendereis tudo. . .
Não vos inquieteis acerca do que é justo ou injusto. O conflito entre o bem e o mal
É a moléstia do espírito.
É verdade que, tanto quanto permanecemos na moléstia do espírito, a “moléstia” é “má” e o (mal) conflito continua. Mas persistimos julgando o julgamento, e a julgar o juízo do julgamento — círculo vicioso e regressão infinita que os budistas chamam samsara, situação semelhante àquela do esquilo em sua gaiola, onde se tenta ter a vida sem a morte, e o bem sem o mal. Tais círculos viciosos não podem ser interrompidos por preparações, métodos ou disciplinas espirituais, que apenas são transferências. A única maneira de parar é parar — imediatamente, instantaneamente — pela ação e não pelo pensamento. Esta parada pode ser feita, como podemos semear os grãos e colher os frutos, ainda que nenhuma ação real seja “cumprida” por um “eu” conceituai. Separar o agente da ação, o cientista da ciência, é uma escolha semântica que não é natural.
Apenas o sofrimento existe, para aquele que sofre
Há o fato, mas não o que faz;
O nirvana existe, mas o pesquisador não;
Lá está a via, mas não o viajante.
Assim, o fato é que todo desejo de melhorar o mundo, ou a si mesmo, nada mais é que fantasia conceituai, pois, enquanto permanecemos no domínio dos conceitos, somos incapazes de identificar a direita sem contrastá-la com a esquerda, nem o bem com o mal. Isto é verdadeiro tanto no domínio político quanto no psicológico, pois, ao nos preocuparmos com as ideologias de esquerda ou direita, afastamo-nos dos problemas específicos, bem como nossos projetos para melhorar o mundo afastam-nos das sementes e da colheita. Em nome de tais projetos fazemos desaparecer populações inteiras a fim de liberá-las, lançamos criminosos nas prisões para reabilitá-los, e mantemos os loucos isolados nos asilos, na vã esperança de que algum milagre os torne sãos de espírito.
Destarte aqueles que são chamados negros não são apreciados pelos que se chamam brancos (prefiro contrastar a cor e a descoloração) porque os brancos judaico-cristãos estabelecem um paralelo entre o negro e o mal, e lutam por um cosmo absurdo onde poderemos encontrar a direita, mas não a esquerda. Infelizmente, as pessoas de cor foram contaminadas por essa religião e lutam (isso se compreende) por algo mais que igualdade de direitos. Mas, quanto mais nos intrometermos nas discussões acerca do mérito dessas questões, maior mal causaremos para nosso bem, e durante esse período esqueceremos de semear o grão e colher o fruto.
A “doença do espírito” advém do fato de que confundimos o que se pode dizer, ou pensar, com o que se pode fazer e o que acontece em realidade. A libertação desse estado de confusão advém com a consciência e não com o pensamento. Mas é frustrada pela vontade de ser consciente e de não pensar, ou ainda de suspender o pensamento. A noção mais válida, que é a de “fim”, de se desembaraçar dessa confusão, é a que chamamos de putrefação do zen. Os conceitos de sanidade e enfermidade, de bem e de mal, de melhor e pior, têm o mesmo uso e a mesma relação com a vida que em marcenaria os conceitos de longo e curto, de alto e baixo: mesmo um pedaço curto de madeira pode ser longo com 3 cm. Mesmo o câncer é um crescimento e quando Ramana Maharshi morria, opôs-se aos médicos dizendo: “Também ele quer crescer. Deixai-o tranqüilo”. Extremo exemplo de renúncia, talvez: não ao amor ou à energia, mas à discriminação entre o bem e o mal. Renuncia-se então a ser disjunto de tudo aquilo que se passa: é o que Tillich chamava “a coragem de ser”.
Pode-se chamar uma atitude desse tipo de fatalista e, no entanto, a fatalidade não atinge ninguém; nossas reações subjetivas fazem parte daquilo que ocorre objetivamente — e conseqüentemente não nos lançamos no mundo. É a atitude taoísta do wou-wei, da não ingerência no tao, o curso da natureza. Entretanto, wou-wei não é uma ordem, nem um método a seguir: é a tomada de consciência de que não somos qualquer coisa exterior ao tao, capaz ou incapaz de nele intervir. Senti vossa própria decisão como um evento que se produz, como a eclosão de um botão de flor.
Tal reordenação da consciência assemelha-se ao que acontece quando se olha as telas abstratas ou não figurativas como se fossem fotos coloridas — por exemplo, das veias do mármore, ou plantas microscópicas. Logo, o caráter do quadro muda inteiramente, adquire uma terceira dimensão e se torna expressivo e surpreendente. A mudança é ainda mais notável, assim que a experiência subjetiva é aceita como uma coisa vinda de si mesma, como o vento, ou — o que é o mesmo — assim que a experiência objetiva é aceita como algo que é feito como o respirar.