Watts (DM) – D. T. Suzuki, o intelectual “não-mental”

WATTS, Alan. Does it matter? : essays on man’s relation to materiality. New York: Vintage Books, 1971

Carvalho

Jamais tive, na vida espiritual, mestre oficial [guru ou roshio] — apenas um modelo, do qual jamais verdadeiramente segui o exemplo, posto que uma pessoa sensível não gosta que se a macaqueie. Este modelo foi Suzuki Daisetsu, pessoa ao mesmo tempo mais sutil e mais simples que jamais conheci. Eu estava à vontade na ambiência intelectual e espiritual que criava em torno de si, ainda que jamais o tivesse conhecido intimamente e que eu seja de um temperamento completamente outro. Foi Suzuki que ME fez conhecer o zen assim que, adolescente, li pela primeira vez seus Ensaios Acerca do Zen-Budismo. Nos anos seguintes li com prazer e admiração tudo que escreveu. Pois seus assuntos sempre surpreendiam, suas conclusões levavam sempre, em si mesmas, o começo de outra coisa. Abandonava os sulcos profundos do pensamento filosófico e religioso. Falava por subentendidos, abria os parênteses, deixava entrever, abandonava a frase em meio, espantava por sua ciência [que era enorme] e encantava pela maneira leve e despretensiosa com que se servia de sua erudição. É assim que nessa encantadora desordem, nesse dédalo, que é sua obra, descobri a via para um jardim dos contrários reconciliados.

Demonstrava por que o zen é ao mesmo tempo prodigiosamente difícil e perfeitamente simples, por que ele é ao mesmo tempo hermético e evidente, por que o infinito, o eterno, é precisamente a mesma coisa que vosso nariz, por que a moral é, ao mesmo tempo, essencial à vida espiritual e sem relação com ela, e porque jiriki [a via do esforço pessoal] chega finalmente ao mesmo ponto que tariki [a via do despertar pela fé pura]. A astúcia para quem buscar seguir a Suzuki consiste em jamais “permanecer no lugar”, como se tivesse compreendido seu argumento e se sentisse numa só lida — pois no instante seguinte ele faria com que se percebesse nada haver compreendido.

Suzuki se situava, assim, acima da rotina comum por, sem fazer alarde de excentricidade, não afetar a “personalidade zen” costumeira que se encontra entre os monges japoneses. Quem quer que, vendo-o pela primeira vez, esperasse encontrar um velho senhor com olhos brilhantes, sentado num cômodo vazio, do tipo shibui, e pronto para responder perguntas, ficaria muito surpreso. Pois Suzuki, com suas sobrancelhas maravilhosas, parecia mais com um intelectual taoísta chinês — espécie de Lao Tzu letrado — que estivesse o dom, como todos os bons taoístas, daquilo que seria correto chamar de humor metafísico. De tempos em tempos seus olhos brilhavam, como se acabasse de perceber a piada suprema, e como se, por compaixão daqueles que não a perceberam, se contivesse de gargalhar.

Vivia na parte arranjada de modo ocidental de sua casa de Kamakura, completamente cercado de pilhas de livros e resmas de papel. Essa desordem se estendia por várias salas. Em cada uma delas ele escrevia um livro diferente, ou ainda um capítulo diferente de um mesmo livro. Podia assim se deslocar de uma sala para outra sem ter que tornar a arranjar seu material de referência cada vez que se sentisse disposto a trabalhar em um projeto em lugar de outro; mas a senhorita Okamura, sua admirável secretária [que era na verdade uma aspara enviada do paraíso oriental para cuidar dele durante sua velhice], tinha, apesar de tudo, o ar de sempre saber onde se encontrava alguma coisa.

Suzuki falava lentamente, sem pressa, com uma voz doce, num excelente inglês que tinha um leve sotaque japonês, muito agradável a nossos ouvidos. Durante a conversação, explicava-se quase sempre com a ajuda de uma caneta e de um papel, desenhando diagramas para ilustrar seu argumento e ideogramas chineses para identificar seus termos. Ainda que demonstrando uma paciência infinita, tinha o dom de desenrolar os argumentos confusos, ou o pedantismo acadêmico, sem, entretanto, ofender. Lembro-ME de uma conferência em que alguém lhe perguntou: “Dr. Suzuki, quando o senhor emprega a palavra ‘realidade’, usa-a para designar a realidade relativa do mundo físico, ou a realidade absoluta do mundo transcendente?” Ele fechou os olhos e tomou a atitude característica que alguns de seus estudantes chamam “fazer um Suzuki” e em que não se podia distinguir se dormia ou meditava. Depois de aproximadamente um minuto de silêncio, mas que pareceu mais longo, abriu os olhos e respondeu: “Sim”.

Numa de suas aulas acerca dos princípios fundamentais do budismo: “Nesta manhã chegamos à quarta verdade essencial. . . que se chama Sendeiro de Oito Caminhos. O primeiro passo do Sendeiro de Oito Caminhos se chama sho ken e significa visão correta. Todo budismo é resumido, em verdade, na visão correta, porque visão correta não é uma visão especial, mas visão definida. Segundo passo do Sendeiro de Oito Caminhos…” [Nesse ponto ele fez uma longa pausa.] “Oh! Esqueço o segundo passo. Procurem no livro.”

No mesmo espírito recordo-ME de seu discurso no último encontro do World Congress of Faiths [Congresso Mundial das Religiões], no velho Queen’s Hall em Londres. O tema era “O Ideal Espiritual Supremo” e depois de muitos oradores terem arengado insípida e interminavelmente, chegou a vez de Suzuki. Assim que lhe pediram para falar acerca do ideal espiritual supremo, não soube mais que responder. “Agora, não sou mais que um simples campesino, vindo de uma parte distante do mundo e lançado subitamente nessa cidade turbulenta que é Londres. Sinto-ME atônito e meu espírito se recusa a funcionar do modo que lhe é habitual quando estou em meu país. Em segundo lugar, como uma pessoa tão pouco importante, como eu poderia falar de uma coisa tão elevada quanto o ideal espiritual supremo?. . . Na verdade, não sei o que significa espiritual, nem ideal, nem o que é ideal espiritual supremo.” E consagrou o resto de seu discurso à descrição de sua casa e de seu jardim no Japão, comparando-os à vida numa grande cidade. Ele que traduzira o Lankavatara Sutra! E o público, em pé, ovacionou-o.

Perfeitamente consciente da relatividade e da insuficiência de toda opinião, jamais discutia. Quando um estudante tentou lançá-lo na discussão de certos pontos sobre os quais o célebre erudito budista Junjiro Takakusu tinha opinião diferente, seu único comentário foi: “Este mundo é grande; há lugar suficiente para nós dois, o professor Takakusu e eu”. Entretanto, teve quase uma altercação quando o pensador chinês Hu Shih acusou-o de obscurantismo [ao afirmar que o zen não podia ser expresso em linguagem racional] e de não possuir senso histórico. Com grande cortesia, Suzuki replicou: “O mestre zen, em geral, despreza aqueles que se comprazem no comércio de palavras e ideias, e é preciso dizer que, a esse respeito, Hu Shih e eu mesmo somos grandes pecadores, assassinos de Budas e patriarcas: estamos ambos votados ao inferno”.

Jamais conheci grande erudito, grande intelectual, tão desprovido de auto-suficiência. Quando encontrei Suzuki pela primeira vez, fiquei abismado ao ouvi-lo perguntar-ME [a mim, que tinha então vinte anos] como achava que deveria ser preparado certo artigo, e, tendo eu o topete de dizer-lhe, ver que seguia minha sugestão. A auto-suficiência, a irascibilidade do universitário eram-lhe completamente estranhas. Assim, certos sinólogos americanos, especialistas nos ataques confraternos por meio de golpes de apostilas, tendem a se ofuscar com seu uso um pouco desenvolto da documentação e do “aparato crítico” e a falar dele como um vulgar vulgarizador. Não se apercebem de que ele amava sinceramente a erudição e não se ressentia, portanto, da necessidade de ter “o ar de um erudito”. Não tinha necessidade de usar a bibliografia como engodo para ressaltar sua personalidade.

Talvez a essência do espírito de Suzuki não possa ser descoberta com a simples leitura de suas obras: é preciso ter conhecido o homem. Numerosos leitores queixam-se de que sua obra diverge em muito do zen, de que é verbosa, fragmentária, hermética e que se perde em considerações de ordem técnica. Um monge zen explicou-ME, um dia, que a atitude de mushin [o modo zen do esquecimento do eu] assemelhava-se à do carpinteiro japonês que pode construir uma casa de madeira sem ter a planta. Perguntei: “E aquele que desenha a planta sem ter planta para fazê-lo?” É, creio, a atitude que possuía Suzuki relativamente à erudição: pensava, intelectualizava, lançava-se aos manuscritos e dicionários, como um monge zen poderia varrer o chão no espírito mushin. Eis suas próprias palavras: “O homem é um caniço pensante, mas cumpre suas maiores obras quando não calcula, nem pensa; é preciso reconstituir ‘a inocência da criança’ por longos anos de aplicação na arte de se esquecer a si mesmo. Quando este objetivo tiver sido alcançado, o homem pensa e, portanto, não pensa. Pensa, como a chuva que cai do céu, pensa como as ondas que se agitam no ocidente; pensa como as estrelas que iluminam os céus noturnos; pensa como os renovos verdes na agradável brisa da primavera. De fato, é a chuva, o oceano, as estrelas, o verdor”.

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