Milhares de anos atrás, a comprovação da eficácia do pensamento racional e do sistema de leis para gerenciar as relações sociais certamente deve ter colocado em dúvida o aspecto impulsivo e intuitivo da parte orgânica e não reflexiva do homem. Por um lado, vemos a ansiedade de ter de escolher entre a intuição e a razão, uma escolha que teria sido relativamente simples se a intuição dissesse respeito apenas aos interesses individuais e a razão aos da sociedade. Mas, por outro lado, sempre podemos duvidar da validade de uma linha de raciocínio, que pode não ter sido seguida até sua conclusão, que pode não ter levado em conta fatores importantes ou que pode simplesmente estar errada. Além disso, há o fato de que a intuição às vezes é mais bem-sucedida do que a razão, principalmente em situações complexas que mudam rápido demais para que as palavras consigam acompanhar. Mas assim que você duvida de seu primeiro passo, você cai em perguntas intermináveis. Em que mais podemos confiar? Na inteligência? Mas qual é o teste de inteligência? Informações? Mas como sabemos que é suficiente? Inspiração? Mas como saber se ela vem de Deus ou do Diabo? Pior ainda, uma vez que a dúvida é lançada, não há como voltar atrás. A inocência está perdida, e o anjo com a espada flamejante nos proíbe de encontrá-la novamente. Uma vez passado esse ponto, o único recurso é conter e suportar nossa ansiedade.
Depois vem a culpa, o sentimento que nos invade de que algo obviamente deu errado e que somos responsáveis por isso. Houve uma época, há tanto tempo que sua lembrança só pode ser imaginária, em que o primeiro movimento era cheio de sabedoria. E mesmo que levasse à morte imediata, essa morte era magnífica: a derrota radiante da vegetação no outono, a glória do fogo que destrói as mariposas. O sucesso ou o fracasso eram irrelevantes em termos de sobrevivência cronológica ou quantitativa. Pois o homem que vivia intuitivamente sempre agia perfeitamente, e seus movimentos tinham a beleza da espuma cercada pelas ondas, das conchas corroídas pelo mar e do andar dos gatos. Exceto pelo fato de que ele não sabia.
Saber, e saber que você sabe, significa prestar atenção, significa observar o movimento da vida, dividindo-o em passos, impulsos e unidades. Mas assim que, graças a esse processo de focalização, sabemos como vivemos, nos movemos, pensamos e falamos, esses processos não ocorrem mais por conta própria. Nós nos tornamos responsáveis. Temos que fazê-los aparecer e pensar muito sobre o curso que queremos que eles tomem. A partir daí, nos sentimos ansiosos, porque nunca sabemos ao certo o que é certo, e nos sentimos culpados porque, afinal, somos responsáveis e, assim que há responsabilidade, algo dá definitiva e estranhamente errado.
Começamos a fazer o papel de Deus, ou seja, controlamos nossa vida em vez de deixar que ela se desenrole. E Deus diz: “Tudo bem, então. Você é o seu mestre. Você é o seu mestre”. Mas somos como o aprendiz de feiticeiro e não sabemos o que fazer. Então, a dor deixa de ser êxtase e se torna punição e, ao mesmo tempo, nos sentimos responsáveis por nossa morte. A morte deixa de ser a vida que se transforma e se renova; não é mais uma questão de embaralhar as cartas para dar uma nova chance. A morte se torna o sinal de fracasso, o salário do pecado, o resultado de nossa incapacidade de desempenhar o papel de Deus.
O segredo por trás dos bastidores, que a espada flamejante da culpa nos impede de ver, é que, na realidade, é Deus quem está interpretando o homem. O foco da atenção é a onisciência (tomada em seu sentido hindu) que se contrai em um ego e depois se torna fascinada, como quando a mente é hipnotizada ao fixá-la em um ponto, enfeitiçada, encantada e paralisada. Colocando-se em um transe, Deus se esquece de como sair dele, tanto que se considera um homem brincando — e se sentindo culpado por isso — de ser Deus. Porque prestar atenção também significa ignorar e esquecer: significa olhar para a forma e esquecer a substância da qual ela é inseparável; significa ver o interior tão intensamente que você se esquece do exterior; significa sentir-se sozinho em seu corpo, isolado do mundo ao seu redor. A melhor parte de mim mesmo aparece para mim como um universo no qual fui lançado como um estranho. Não o entendo mais intuitivamente e sou forçado a dar sentido a ele, tomando-o pedaço por pedaço. Nessa situação impossível, a Palavra é minha salvação. Tendo me esquecido de como viver, preciso aprender as regras. Tendo me esquecido de como dançar, preciso de um esboço dos passos. Nem sei mais como fazer amor, e meus pais têm vergonha de me ensinar.
Assim, a sabedoria humana não é transmitida de geração em geração por hereditariedade, mas pelo meio da fala, que faz parte de um domínio sobrenatural, sem relação com os atos espontâneos do corpo. As facilidades proporcionadas pela linguagem são tais que essa sabedoria, pelo menos em uma direção muito específica, é infinitamente mais complexa e eficaz do que o comportamento hereditário dos animais. Ela permite que o homem transforme seu ambiente e seu comportamento em um grau sem paralelo na natureza. Mas, uma vez iniciado esse processo, o homem é forçado a continuar. Não tanto porque ele pode mudar o mundo, mas porque ele deve fazê-lo — mas a verdade é que ele não sabe como. Pois as palavras são enganosas. Elas dizem o quê, mas não como. Quanto à Lei e aos livros que contêm as regras, é ainda pior: eles dizem que devemos deliberadamente fazer certas coisas, como amar, o que só é verdadeiramente satisfatório quando acontece espontaneamente. Portanto, temos de nos certificar de que elas aconteçam espontaneamente. “Amarás o Senhor teu Deus” — e não formalmente, mas “de todo o teu coração, de toda a tua alma, de todas as tuas forças”.