Eu transcendental (Abellio)

(Abellio1984)

Vamos precisar cuidadosamente este ponto. Ao afirmar que toda nossa experiência do mundo poderia não passar de um “sonho coerente”, não estamos de modo algum pondo em dúvida a existência desse mundo, cuja evidência aliás já reconhecemos. Simplesmente constatamos que a existência externa de tal mundo não é absolutamente necessária a priori para dar conta do que chamamos nossa experiência do mundo. Em outras palavras — e aqui devemos empregar a primeira pessoa do singular — embora eu acredite na existência do mundo, não é de forma alguma absurdo que eu postule sua não-existência, no sentido de que é perfeitamente concebível que eu esteja sozinho e projete abusivamente fora de mim os resultados de minhas percepções, experiências, leituras, diálogos com outros, assim como os frutos de minha crença na existência do mundo. Num palavra, é perfeitamente imaginável que a noção de mundo exterior a mim seja apenas ilusória e que, na solidão de minha consciência, seja eu e somente eu quem sustente todos os elementos dessa ilusão.

Porém, desde que se torna indiferente, para o que chamo minha experiência do mundo, que este exista ou não, minha crença em sua existência perde todo valor fundamental e se reduz ao estado de mero pressuposto do qual devo, como tal, ME abster de fazer uso. Assim, neste ponto de nossa reflexão, todas nossas construções mundanas — científicas ou outras — parecem singularmente [38] assemelhar-se ao “colosso com pés de barro” de que fala o profeta Daniel.

Em contrapartida, uma primeira evidência é absolutamente indiscutível e se revela na experiência ideal do aniquilamento do mundo, quando sei indubitavelmente que existo, mesmo que o conjunto de minhas percepções se revele totalmente incoerente; é a evidência de minha própria existência enquanto Eu meditante, independentemente de qualquer hipótese sobre a do mundo, tal como expressou Descartes em seu célebre aforismo. E, de fato, mesmo que minha experiência do mundo se reduza ao “sonho coerente” de que fala Husserl, trata-se afinal de meu sonho, e não poderia duvidar por isso de meu próprio ser.

Entretanto, e este é o ponto essencial, este Eu cuja existência ME é absolutamente certa não se identifica com o eu da vida cotidiana. Este último, com seus pressupostos e crenças, está agora incluído na redução que “eu” acabo de operar. Quanto ao primeiro, que se revela assim a cada um de nós pelo questionamento de todo pressuposto e que Husserl, em oposição ao eu natural, chama de Eu transcendental, não é outro senão o espectador imparcial em nós de que já falamos. Em outras palavras, se o eu natural é consciência em primeiro grau, o Eu transcendental, por sua vez, é consciência em segundo grau, isto é, consciência de consciência.

Não nos enganemos: enquanto evidência primeira, o Eu transcendental não pode reduzir-se a algum conceito abstrato ou ficção metafísica qualquer. Ao contrário, é nossa própria vida, que cabe a cada um descobrir em si mesmo na evidência realmente vivida de seu ser. É ele, particularmente — e na medida em que participa da intersubjetividade transcendental universal, como veremos longamente — que se manifesta plenamente nas intuições certas evocadas anteriormente.

A partir de então, com base nesta evidência primeira, toda a fenomenologia progredirá de evidência indiscutível em evidência indiscutível num movimento que não é mais demonstrativo mas mostrativo, no sentido de que não mais se refere aos pressupostos e procedimentos discursivos próprios da atitude natural, mas visa ao [39] contrário induzir estas evidências em cada consciência, explicitando e mostrando seus conteúdos. Isso equivale a dizer que cada etapa da experiência fenomenológica deve constituir, para quem a tenta, uma revelação da mesma ordem que aquela pela qual o discípulo vê subitamente seus vividos de consciência coincidirem com os de seu mestre.

Certamente, por mais indiscutível que seja, a evidência em que se dá o Eu transcendental não basta para explicitar seu conteúdo: é apenas um ponto de partida, como atesta todo o difícil percurso fenomenológico. Do mesmo modo, para tomar um exemplo da atitude natural, tampouco a evidência (ordinária) da existência do Sol permite por si só explicar o funcionamento desse astro: como mostra toda a história da ciência, tal resultado exige um esforço suplementar considerável. Husserl, ao buscar os fundamentos autênticos da ciência, sabia sem dúvida que alcançar este começo estava reservado para o fim. Além disso, suas constantes alusões ao método “em ziguezague” que a fenomenologia lhe impunha traduziam a necessidade de, a cada etapa, retornar para trás, aquém do ponto de partida de cada uma, para poder avançar depois além do ponto de chegada atual.

O mesmo ocorre com nosso percurso numerológico. Por um lado, como destacamos, é a coerência final dos resultados obtidos que deve legitimá-lo em seu conjunto. Por outro, ele nos obriga por nossa vez a “ziguezaguear” sem cessar para discernir sob cada fundamento provisoriamente admitido um fundamento mais profundo e seguro, enquanto correlativamente os resultados se tecem progressivamente numa trama cada vez mais abrangente e densa. Estes perpétuos ir e vir, cujo vaivém é marcado pelas “intuições fulgurantes” que nos dão a certeza de estar no caminho certo, não manifestam senão, de um lado, o enraizamento cada vez mais profundo de nossos próprios fundamentos no Eu transcendental e, de outro, o desdobramento dos resultados correspondentes no que devemos chamar de “verdadeiro mundo”.

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