Ibn Kahldun Homem

Ibn Khaldun — Prolegômenos
Excertos do «SEXTO DISCURSO PRELIMINAR» da tradução de José Khoury e Angelina Bierrenbach Khoury, IBF, 1958
TRATANDO DOS HOMENS QUE, SEJA POR DISPOSIÇÃO INATA, SEJA POR TREINO OU DISCIPLINA, CHEGAM A PERCEBER O MUNDO INVISÍVEL; COM OBSERVAÇÕES PRELIMINARES SOBRE A NATUREZA DA REVELAÇÃO

Dentro da espécie humana, Deus Altíssimo escolheu certos indivíduos a quem concedeu o privilégio de conversarem com Ele. Criando-os para O conhecerem e colocando-os como intermediários perante suas criaturas e servos, encarregou estes poucos privilegiados de ensinar aos homens quais seus interesses verdadeiros, e, guiando-os com zelo, preservá-los do fogo do inferno seguindo o caminho da verdade. Além dos conhecimentos que lhes transmite e das maravilhas que ao mundo anuncia por sua boca, Ele dá-lhes a faculdade de predizerem o que deve acontecer e indicarem os acontecimentos velados ao resto dos mortais. Como somente Deus tem conhecimento destas coisas, serve-se do ministério de certos homens de escol, que por si mesmos são incapazes de conhecê-las, para fazer um tal gênero de comunicação. O Profeta diz: “Quanto a mim, apenas sei o que Allah me ensinou”. As predições destes homens têm a verdade como carácter distintivo e essencial, o que o leitor terá ocasião de verificar quando tratarmos da verdadeira natureza do Profetismo.

Caracteriza os indivíduos desta classe um sinal distintivo: no momento em que recebem a revelação divina, eles se acham completamente alheios a tudo o mais que os envolve, fazendo ouvir gemidos surdos. Ao vê-los assim, dir-se-ia que caíram em síncope ou que desmaiaram, quando não é uma coisa nem outra. Na realidade, estão absortos no reino espiritual que acabam de encontrar. Isto acontece com eles em virtude de uma potência perceptiva que lhes é própria e que é diferente de toda a percepção. Não tardará que esta potência desça até à percepção das coisas compreensíveis aos mortais, percepção que chega, quer por meio de sussurro de palavras que só eles compreendem, quer sob a figura de pessoa portadora de mensagem da parte de Deus. O êxtase é momentâneo e passa, mas a mente conserva o teor do que lhe foi dito.

Interrogado sobre a natureza da revelação que recebia, o Profeta disse: “Às vezes, ela me vem como o tilintar de um sino, o que é muito cansativo para mim; e, quando acaba e me deixa, eu já retive o que me foi dito. Outras vezes, o anjo toma a forma humana para me falar, e eu guardo o que ele me diz”. Quando neste estado, era preso de dores indizíveis e deixava escapar gemidos abafados. Nos livros das Tradições (Hadith), encontramos os seguintes pormenores: O Profeta tratava, como uma doença, certa dor que sentia em seguida às revelações que recebia1. Aycha, mulher de Muhammad, dizia: Certa vez, a revelação chegou-lhe num dia excessivamente frio, e, quando terminou, a sua fronte estava banhada de suor. No próprio Alcorão, Deus Altíssimo diz: Nós vamos dirigir-te uma palavra opressiva (Ale. LXXIII: 5).

Foi devido ao estado em que ficavam os profetas, ao receberem a revelação, que os politeístas os tratavam de loucos, dizendo: “É um homem sujeito a visões”. “Ele tem um demônio familiar”. Ao emitirem semelhante juízo, foram enganados pelas circunstâncias exteriores que acompanhavam o êxtase, e aquele a quem Allah quer enganar não acha guia (Ale. XIII: 33).

Reconhecem-se ainda estes personagens favorecidos por Deus por seu procedimento virtuoso, que os caracterizava antes de receberem a revelação; pela sua viva inteligência e pelo cuidado que demonstravam em não cometerem atos condenáveis, e em evitarem toda espécie de desonra. Eis aí um conjunto de qualidades que se designam pelo termo de “Ismat”. Dir-se-ia que todo profeta é dotado, por natureza, de uma aversão às coisas repreensíveis e de uma viva atenção para evitá-las. Pode-se mesmo afirmar que as coisas condenáveis repugnam à natureza dos profetas.
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Lê-se no Sahih (d’Al-Bukhari) que, quando da construção da Caba, Muhammad, ainda muito jovem, achava-se ali em companhia de seu tio Al-Abbas. Ao levar a Pedra Negra2 (para colocá-la no devido lugar, no novo edifício), Muhammad teve que servir-se de sua capa, com o que se descobriu pondo a nu parte de seu corpo, o que lhe motivou a perda dos sentidos, voltando a si somente depois que lhe cobriram o corpo. Convidado a um banquete de bodas onde não faltavam os divertimentos, caiu num sono profundo, acordando só com o levantar do sol, de modo que não tomou parte na festa. Evitou esta tentação, graças a uma disposição natural dada por Deus. Com os tempos, chegou ao ponto de se abster de alimentos que podiam ser desagradáveis ao próximo; jamais tocou em cebola ou alho. Ao perguntarem-lhe a razão, respondia: “Muitas vezes tenho que me entreter com pessoas diferentes daquelas com quem tendes o hábito de falar”. Vejam-se as indicações que dá a sua mulher, Khadija, no momento em que o Profeta recebia inesperadamente a primeira revelação. Querendo saber o que de fato se passava com ele, disse-lhe: “Coloca-me entre ti e tua capa”. Mal acabou de fazê-lo, o mensageiro (celeste) afastou-se. “Com certeza, disse ela então, ele não é um demônio; certamente é um anjo”, querendo significar que os anjos não se aproximam das mulheres. Perguntou ela ainda: “Quando o anjo vem visitar-te, qual o traje de que ele gosta? — O branco e o verde, respondeu Muhammad. — “Certamente que é um anjo”, disse ela. Por estas palavras, Khadija lembrava que o verde e o branco são cores próprias de tudo que é bom e dos anjos, enquanto que o preto convém somente ao que é mau e aos demônios. Poderíamos citar muitos outros traços semelhantes.

Um outro sinal que caracteriza as pessoas inspiradas é seu zelo em recomendar aos homens a oração, a esmola, a pureza dos costumes e outras obras de religião. Khadija, tendo visto o Profeta assim proceder, ficou convencida da veracidade de sua missão. Procede da mesma origem a convicção de Abu Bacr. Ambos, para se certificarem da veracidade da missão de Muharnmad, nunca procuraram outra prova senão a tirada da conduta do Profeta e de seu carácter. Lemos no Sahih que Heráclio, ao receber a mensagem em que o Profeta o convidava a abraçar o Islame, mandou vir a Abu Sufian e os outros Coraixitas de passagem na sua cidade, para interrogá-los sobre Muharnmad. Entre outras coisas, perguntou o que (o novo reformador) os mandava fazer. Respondeu Abu Sufian: “Ele nos recomenda a oração, a esmola, a liberalidade e a pureza dos costumes”. Acabando suas indagações, o Imperador Bizantino disse, concluindo: “Se isto for verdade, não há dúvida que Muharnmad é profeta e sua dominação estender-se-á sobre tudo o que tenho agora debaixo de meus pés”! A pureza de costumes a que alude Heráclio3, é o sinônimo de “Ismat” (ou cuidado de evitar o pecado). Vê-se por aí que este príncipe achava que o procedimento virtuoso de Muharnmad, o seu zelo em propagar a religião e a sua piedade bastavam para demonstrar a veracidade de sua missão. Para crer, Heráclio não pedia milagres. O que prova que a virtude e o zelo, relativamente à religião, constituem sinais para reconhecer os homens que possuem o dom da profecia.

O alto conceito que eles desfrutam entre seus compatriotas, é outro sinal que serve para distingui-los. Lê-se no Sahih: “Deus nunca mandou aos homens um profeta que não dispusesse de forte apoio por parte de seu povo” ou, segundo outra versão: “que não tivesse bastante fortuna entre os seus”. Esta última lição é fornecida por Al-Hákim4, numa correção ao texto do Sahih de Al-Bukhari e ao de Muslim. O Sahih nos ensina que, no interrogatório feito por Heráclio a Abu Sufian, o príncipe perguntou-lhe: “Que caso fazem de Muhammad, entre vós? — É tido em alta consideração”, respondeu o Coraixita. — “De certo! exclamou Heráclio; os profetas recebem sua missão quando cercados pela estima de seus compatriotas”, isto é, quando têm um partido bastante forte para protegê-los contra as violências dos infiéis, e para apoiá-los, até que tenham cumprido sua missão e satisfeito a Deus lutando até o final triunfo da religião e do partido que a professa.

Outro sinal, são as manifestações que vêm confirmar a veracidade dos convidados. Consistem em ações acima do poder humano e, com razão, são chamados “Mujizat”, isto é, coisas que desafiam o poder do homem. Não pertencem à categoria das coisas que Deus pôs ao alcance do homem, mas sim, a um domínio fora da influência de suas forças.


  1. A tradição diz: “Quando uma revelação descia (do céu sobre ele) era tomado de uma cefalalgia, e, para aliviá-la, aplicava sobre a cabeça um cataplasma de hinna (Lawsonia inermis). Esta tradição relativa ao Profeta é relatada por Soyuti na sua Grande Coleção de Hadith. O mesmo grave doutor nos diz que o anjo Gabriel detestava o cheiro das plantas hortaliças, e que Muhammad, não comia nem alho, nem cebola, nem alho porró porque os anjos vinham visitá-lo, não querendo que os mesmos fossem incomodados com isso”. São estas as visitas a que se refere o Hadith seguinte, p. 146. (Nota dos Trad.). 

  2. A Pedra Negra, engastada num dos ângulos externos da Caba, é objeto de grande veneração para os Muçulmanos. (Nota dos Tradutores). 

  3. Quem falou da pureza dos costumes foi Abu Sufian. 

  4. o Imame Abu Abdallah Muharnmad Al- Hakim, nativo de Niçapor, era um doutor do rito chafeíta. Sobre as Tradições, compôs 2 livros: Al-Mustadrac, exame crítico dos dois Sahih, de Bukhari e de Muslim; o outro, intitulado “Al-Iklií”, a Coroa. Morreu em 1014 ou 1015. 

Ibn Kahldun