Excertos do livro “Imaginação Simbólica”, trad. de Liliane Fitipaldi
“Um sinal é uma parte do mundo físico do ser (being), um símbolo é uma parte do mundo humano da significação (meaning).” E. Cassirer, An Essay on Man, p. 32.
Sempre reinou extrema confusão no uso de termos relativos ao imaginário. Talvez se deva presumir que esse estado de coisas provém da extrema desvalorização que sofreu a imaginação, a “phantasia”, no pensamento do Ocidente e da Antiguidade clássica. De qualquer modo, “imagem” (v. eidos), “signo”, “alegoria” (v. alegoria), “símbolo” (v. symbalon), “emblema”, “parábola”, “mito”, “figura”, “ícone” (v. eikon), “ídolo” (v. eidolon) etc. são utilizados indiferentemente peia maioria dos escritores. (Cf. G. Dumas, Traité de psychologie, t. IV, pp. 266-268. Cf. o excelente artigo de F. Edeline, “Le symbole et l’image selon la théorie des codes”. Cahiers Internationaux de Symbolisme, n.2, 1963)
A consciência dispõe de duas maneiras de representar o mundo. Uma, direta, na qual a própria coisa parece estar presente na mente, como na percepção ou na simples sensação. A outra, indireta, quando, por qualquer razão, o objeto não pode se apresentar à sensibilidade “em carne e osso”, como, por exemplo, nas lembranças de nossa infância, na imaginação das paisagens do planeta Marte, na inteligência da volta dos elétrons em torno de um núcleo atômico ou na representação de um além-morte. Em todos esses casos de consciência indireta, o objeto ausente é re-(a)presentado à consciência por uma imagem, no sentido amplo do termo.
Na verdade, a diferença entre pensamento direto e pensamento indireto não é assim tão nítida como acabamos de expor com a preocupação de sermos claros. Seria melhor afirmar que a consciência dispõe de diferentes graus da imagem (conforme ela seja uma cópia fiel da sensação ou simplesmente assinale o objeto), cujos dois extremos seriam constituídos pela adequação total, a presença perceptiva ou a inadequação mais acentuada, ou seja, um signo eternamente privado do significado, e veremos que esse signo longínquo nada mais é do que o símbolo.
O símbolo se define, primeiramente, como pertencente à categoria do signo. Mas na maioria dos signos são apenas subterfúgios de economia, remetendo a um significado que poderia estar presente ou ser verificado. É assim que um sinal simplesmente precede a presença do objeto que representa. Assim também uma palavra, uma sigla, um algoritmo substituem economicamente uma longa definição conceitual. É mais rápido traçar numa etiqueta uma caveira estilizada e duas tíbias cruzadas do que explicitar o complicado processo pelo qual o cianeto de potássio destrói a vida Da mesma maneira, o nome “Vênus”, aplicado a um planeta do sistema solar, ou ainda sua sigla astrológica, ou até mesmo o conjunto de algoritmos que definem a trajetória elipsoidal desse planeta nas fórmulas de Kepler são mais econômicos do que uma longa definição baseada nas observações da trajetória, da magnitude, das distâncias desse planeta em relação ao Sol.
Como os signos desse tipo nada mais são do que um meio de economizar as operações mentais, nada impede (pelo menos em teoria) que sejam escolhidos arbitrariamente. Basta declarar que um disco vermelho com uma barra branca significa que eu não devo avançar, para que esse sinal se transforme no de “contramão”. Nem é necessário que figure, no painel sinalizador, a imagem de um policiai ameaçador. Assim também, a maior parte das palavras, especialmente os nomes próprios, para quem não estudou a filologia da língua, parecem destituídos de qualquer motivação, de qualquer razão para serem constituídos deste modo e não de outro: eu não preciso saber que havia um deus céltico Lug e que “Lyon” vem de Lugdunum, para não confundir a cidade de Lyon com a de Grenoble. Basta saber que a palavra Lyon — que torno precisa através da palavra “cidade” para não confundir foneticamente com o animal “lion” (leão) — remete a uma cidade francesa que realmente existe na confluência do Rhône e do Saône para utilizar esse signo fonético numa convenção cuja origem poderia ser totalmente arbitrária: eu poderia substituir esse nome de cidade por um simples número, como fazem os americanos com suas ruas e avenidas.
Mas há casos em que o signo é forçado a perder sua arbitrariedade teórica: quando remete a abstrações, especialmente qualidades espirituais ou morais dificilmente apresentáveis em “carne e osso”. Para designar o planeta Vénus, eu também poderia tê-lo chamado Carlos Magno, Pedro, Paulo ou Médor. Mas para designar a Justiça ou a Verdade, o pensamento não pode se entregar ao arbitrário, pois esses conceitos não são tão evidentes como os que repousam em percepções objetivas. É necessário, assim, recorrer-se a uma modalidade de signos complexos. A ideia de Justiça será figurada por um personagem que pune ou absolve e terei, então, uma alegoria; esse personagem poderá estar rodeado de vários objetos ou utilizá-los: tábuas da lei, gládio, balança e, nesse caso, eu estaria tratando com emblemas. Para abranger ainda melhor essa noção de Justiça, o pensamento poderá escolher a narração de um exemplo de fato judiciário, mais ou menos real ou alegórico e, nesse caso, teremos um apólogo. A alegoria é a tradução1 concreta de uma ideia difícil de se atingir ou exprimir de forma simples. Os signos alegóricos sempre contêm um elemento concreto ou exemplar do significado.
Pode-se, então, pelo menos em teoria, distinguir dois tipos de signos: os signos arbitrários, puramente indicativos2 que remetem a uma realidade significada, senão presente pelo menos sempre representável, e os signos alegóricos, que remetem a uma realidade significada dificilmente apresentável. Estes últimos são obrigados a figurar concretamente uma parte da realidade que significam.
E assim chegamos, finalmente, à imaginação simbólica propriamente dita, quando o significado não é mais absolutamente apresentável e o signo só pode referir-se a um sentido, não a um objeto sensível. Por exemplo, o mito escatológico que coroa Le Phédon é um mito simbólico, já que descreve o domínio proibido a toda experiência humana, o além-morte. Pode-se também distinguir, nos Evangelhos, as “parábolas”, que são verdadeiros conjuntos simbólicos do Reino, e os simples “exemplos” morais: o Bom Samaritano, Lázaro e o Mau Rico etc, que nada mais são do que apólogos alegóricos.3 Em outras palavras, pode-se definir o símbolo, conforme A. Lalande1, como qualquer signo concreto que evoca, através de uma relação natural, algo de ausente ou impossível de ser percebido; ou então, conforme Jung: “A melhor figura possível de uma coisa relativamente desconhecida que não se saberia logo designar de modo mais claro ou característico.”2
1 Cf. P. Ricoeur, Finitude et culpabilité, p. 23: “Uma vez feita a tradução, pode-se abandonar a alegoria que se tornou inútil.”
2 E. Cassirer, Philosofia das Symbolischen Formen, ! 11. p. 285.
3 Cf. O. Lemarié, Initiation au Nouveau Testament, p. 164: “Pode-se distingui-los das parábolas pelo fato de não serem símbolos que transpõem um ensinamento religioso para uma ordem diferente. Os ‘exemplos’ são tirados da própria ordem moral da qual são casos supostos…” Cf. Lua. X, 30,37, XVI, 19,31 etc.
4
5
A. Lalande, Vocabulaire critique et technique de la philosophie, artigo “symbole sens”, n. 2. ↩
Cf. C. G. Jung, Psychologische Typen, p. 642. Cf. F. Creuzer, Symbolik und Mythologie der alten Volker, I, p. 70: “A diferença entre uma representação simbólica e uma representação alegórica reside no fato de que esta transmite unicamente uma noção geral, ou uma ideia diferente de si própria, enquanto aquela é a ideia mesma tomada sensível, encarnada.” ↩