Silburn & Padoux (AGLT:44-45) – graça

Se essas cinco funções de Śiva são cinco aspectos inseparáveis de sua atividade, a última, entretanto, a graça, é considerada a mais elevada. Abhinavagupta enfatiza essa preeminência desde as primeiras palavras de seu comentário sobre o Parātrimśikā [AGP], onde ele identifica Śiva com a energia suprema que é a graça: “O Senhor supremo, dotado de atividade quíntupla, é eternamente permeado pela energia em sua forma mais elevada, que é a graça. Na realidade, Sua própria essência é apenas graça e a energia nunca pode ser concebida como separada de Śiva”.

Definindo essa energia como uma consciência viva que é graça para com o mundo (lokānugrahavimarsamayī), Abhinavagupta esclarece ainda (p. 18), na mesma obra, que é pelo favor da graça suprema do Senhor que os sujeitos conscientes e dignos do mais elevado conhecimento podem alcançar a liberação nesta vida, absorvendo-se na energia divina. No TĀ (13. 285-287), cita um purāna que diz que “é somente do favor divino (prasāda) que procede a devoção: é por meio dele que aqueles cujas mentes atingiram a Realidade alcançam a realização suprema”, para mostrar que a graça é independente do karman, bem como das ações do ser humano. “O favor divino”, acrescenta, “é um modo de ser (bhāva) imaculado e dotado de plenitude. Por meio dele, Śiva brilha espontaneamente em toda a sua plenitude [mesmo quando assume a forma do] si limitado”. Em vez de usar o termo favor (prasāda), usado pelo purāna, Abhinavagupta designa a graça por anugraha (que etimologicamente evoca um movimento favorável em direção a alguém), ou melhor, por śaktipāta, queda ou descida de energia, uma formulação mais dinâmica, que enfatiza a natureza inesperada, imprevisível, porque essencialmente livre e gratuita da graça. Essa energia cai sobre o ser humano que, embora transmigrando, sente uma atração pelo conhecimento iluminador (pratibhā) e, libertando-o do devir, identifica-o com Śiva. A graça, então, pode ser entendida como a descida sobre o ser humano das energias pacíficas e propícias, aquelas que revelam o Si. (Mas, como já foi dito, as energias de Śiva também podem ser temíveis, fatídicas, e o homem é frequentemente seu brinquedo). Ao longo do capítulo 13 do TĀ, Abhinavagupta enfatiza o reinado absoluto da livre iniciativa de Śiva: somente o Senhor age. Poderíamos quase chegar ao ponto de dizer, a esse respeito, que para ele não há outro despertar senão o do próprio Śiva. Mas é precisamente pelo fato de nada estar fora de Śiva que não devemos conceber a queda da energia, śaktipāta, como uma graça que cairia sobre o homem de fora para dentro: ela está também dentro dele, pois é nas profundezas do coração que nasce subitamente para desabrochar em uma consciência inseparável em essência da Consciência Divina. Para citar novamente o TĀ: “Deus, essencialmente luminoso, tendo a Consciência livre como sua natureza, esconde como um jogo seu próprio Si e se torna um si individual em múltiplas formas. Livremente, se prende por atos feitos de pensamento dualizante e construções mentais. Mas tão poderosa é a liberdade de Deus que, como já dissemos, é também Ele que, preso à forma limitada [que assume], toca novamente sua própria essência e a revela em toda a sua pureza” (13. 103-105).

André Padoux (1920-2017), Lilian Silburn (1908-1993)