[La As Doutrinas da Almarévélation d’Hermès Trismégiste — III Les doctrines de l’âme, Belles Lettres 1983]
Prefácio
A gnose hermética é o conhecimento de Deus enquanto hipercósmico, inefável, não suscetível de ser conhecido apenas pelos meios racionais, e o conhecimento de si mesmo enquanto saído de Deus. De onde resultam logo dois problemas: Qual a natureza deste Deus Agnostos e como aproximá-lo? Como a alma dele saiu, e de onde vem que, saída de Deus, ela afundou-se na matéria? O segundo problema é mais simples, e, como a alma humana nos é melhor perceptível que Deus, o conhecimento que dela tomamos nos permite ter acesso ao conhecimento de Deus. É portanto o problema da alma que abordo neste terceiro volume: o quarto e último tratará do Deus incógnito e da gnose no sentido próprio.
Há cinquenta anos, que se insiste muito sobre a origem oriental das doutrinas gnósticas da alma. Voltaram-se para a Caldeia (Anz), o Irã (Reitzenstein, Bousset), ou mesmo a Índia (Filliozat). Estas influências são possíveis, mais ainda não estabelecidas, até onde sei, com parentesco certo entre tal obra oriental (datada) e tal escrito de gnose pagã. Mas antes de ir tão longe porque não não se demandar se a tradição grega e seu desdobramento, por novas aspirações, não são suficientes para explicar o quadro e os dogmas essenciais da antropologia hermética. Exemplificando com o caso de Plotino, Festugière demonstra que apesar de todas as influências buscadas na obra do filósofo, prevalece sua grande dívida com a tradição grega dos séculos II e III: seus tratados são fundamentalmente diálogos com o pensamento de Platão. Do mesmo modo, a respeito do hermetismo, é legítimo se interrogar sobre o que eram as doutrinas da alma no ensinamento regular das escolas de filosofia grega dos séculos II e III de nossa era.
Festugière resgata o testemunho de Tertuliano, em particular seu De anima, composto entre 210 e 213, comparando-o com os Placita de Aetius, o Didaskalikos de Albinos, alguns extratos herméticos e o Peri Psyches de Jamblico, e identifica um esquema tradicional, que pode reconstituir o quadro dos tratados escolares da alma no século II. Este quadro remonta a Platão e compreende quatro partes: natureza da alma, encarnação, sorte da alma encarnada, escatologia.
Um fato notável é que este mesmo quadro platônico encontra-se na gnose hermética e nos diversos sistemas da gnose pagã: a alma filha de Deus, feliz no Céu próxima a Deus, cai em um momento dado na matéria, leva uma existência empírica, depois, em certas condições, sobe ao Céu. As diferenças se dão não no plano e nas doutrinas, mas nos métodos de ensinamento e na que reveste o exposto. Mas a tradição filosófica permanece como pano de fundo possibilitando um ponto de partida para interpretação.
Desde 1949, Festugière busca a comparação entre Tertuliano e Jamblico, trabalho que agora orienta o plano desta obra: existência no século II de um quadro escolar dos Tratados da Alma e similaridades substanciais entre este quadro e o da gnose hermética no Poimandres; as diferenças de forma e espírito são também evidenciadas. No apêndice se oferece uma tradução comentada do Peri Psyches de Jamblico e do Pos empsychoutai ta embrya de Porfírio, de importância capital para compreensão das doutrinas de encarnação da alma.
Para ilustrar a ideia exposta, de uma apotheosis da alma, Festugière resgata também o símbolo do fênix de Daphne. Embora não apareça nos textos herméticos, dois caracteres deste símbolo são aparentados ao hermetismo: o fênix é macho-fêmea, como o Anthropos do Poimandres e como o Nous supremo ele mesmo, de onde veio o Anthropos. Isto manifesta a natureza divina e o torna adequado a nossa figuração. Por outro lado, o fênix renasce de suas cinzas e não há rompimento entre morte e renascimento (paliggenesia), esta significando uma continuidade da vida no Tempo infinito, como se encontra no hermetismo. Por último o fênix é um símbolo sóbrio e despido de preconceitos religiosos, se adaptando especialmente a uma religião que queira ser uma pura religio mentis (Asclépio 25).
Este terceiro volume assim como o quarto que se segue, desenvolvem ideias enunciadas no volume II nos capítulos sobre Platão e que se fundam numa exegese do Timeu.
- Introdução — O QUADRO DOS TRATADOS DA ALMA E O QUADRO DA GNOSE HERMÉTICA
- Capítulo I — O ORIGEM CELESTE DA ALMA
- Capítulo II — A QUEDA DA ALMA
- Capítulo III — SORTE DA ALMA ENCARNADA
- Capítulo IV — A ESCATOLOGIA
- APÊNDICES