Chodkiewicz (MCSS) – Dupla Escada

A Dupla Escada

A hagiologia akbariana se ordena ao redor de três noções fundamentais:

  • wiratha — a herança de uma ciência espiritual ou de um modo de conhecimento de Deus próprio a um dos modelos proféticos — explica as formas da santidade.
  • niyaba — a substituição do wali em um papel que só pertence verdadeiramente à Realidade maometana — funda a função da santidade.
  • qurba — a proximidade — define assim a natureza da santidade (associa-se ao grau supremo da walaya).

Como se tornar um santo? Inscrita necessariamente em uma economia espiritual que dela rege as formas e dela distribui as funções, a santidade é a princípio o fruto de uma busca pessoal e sempre sem precedente: “Para cada um de vós Nós designamos um caminho e uma via” (Corão 5:48). Ibn Arabi insiste constantemente sobre a impossibilidade absoluta de repetição das teofanias, logo dos seres, das coisas, dos atos (Futuhat). Jamais dois “viajantes” (salik) passarão pela mesma estrada. A aventura de um não será jamais a aventura de outro.

No entanto toda viagem iniciática, quaisquer que sejam as particularidades dela, tem etapas e perigos cuja natureza e a repartição se conformam a um modelo, na falta do qual a própria noção de “mestre espiritual” não teria sentido algum. Este itinerário tipo, enriquecido de inumeráveis variantes, faz parte dos topoi da literatura sufi. Como em toda parte, em particular no Islã, o miraj do profeta é uma referência maior, apresentando-se frequentemente como a descrição simbólica de uma ascensão (v. psychanodia). É o tema da ascensão tomado como figura do percurso que conduz à walaya que encontraremos em Ibn Arabi.

A Epístola das Luzes (vide EL LIBRO DE LAS LUCES), redigida em Konya em 602h, aos 42 anos de idade, é o fio condutor desta análise. Seu subtítulo “Sobre os segredos que são concedidos àquele que pratica a reclusão celular” — dá a pensar que se trata de um tratado sobre a khalwa, assunto tratado em capítulos da Futuhat e em um opúsculo independente. Embora o isolamento (uzla) e o retino (khalwa) apareçam no início como preâmbulo do texto, o propósito desta risala, é descrever “as modalidades da viagem em direção ao Mestre de Todo-Poder”: viagem vertical, ascensão em espírito que, de céu em céu, conduz o salik sobre os traços do Enviado de Deus cujo miraj projeta o mapa do percurso a realizar. A subida para Deus é antes de tudo um imitatio Prophetae.

Sobre o miraj dos awliya a Risalat al-anwar não é o único escrito de Ibn Arbai, o capítulo 167 das Revelações de Meca, sob forma alegórica, o capítulo 367, de maneira diretamente autobiográfica, o Kitab al-isra, o Livro da Viagem Noturna, desenvolvem o mesmo tema. Os comentários de Jili podem complementar embora sejam um conjunto de citações de Ibn Arabi.

O ser ao qual se endereça a Epístola das Luzes não é um noviço. Não se tem preliminares da Via, como os manuais clássicos do Sufismo. O destinatário (desconhecido) já alcançou por disciplinas apropriadas ao ponto central de começará a ascensão. Os primeiros parágrafos, segundo a doxologia tradicional, são uma breve recordação das condições a preencher e das disposições requeridas daquele que empreende esta expedição perigosa:

“Respondo, ó amigo muito caro e companheiro muito próximo, à questão que pusestes sobre as modalidades de viagem (suluk)1 para o Mestre da Todo-Poder, a chegada em Sua presença e o retorno2 — de Ele e por Ele — para Suas criaturas sem que haja portanto separação: pois não há, na existência, nada além de Alá, Seus atributos e Seus atos. Tudo é Ele, por Ele, procede de Ele, revem a Ele; e, se Ele Se velasse ao universo mesmo que fosse por um piscar de olhos, o universo cessaria de um só golpe de existir pois só subsiste por Sua proteção e Seu olhar. Mas Aquele cuja aparição em Sua luz é tão brilhante que os olhares não podem O perceber (Corão 6:103), convém dizer que Sua aparição é uma ocultação.” É necessário sublinhar a densidade destas linhas onde se enunciam cursivamente tantas noções fundamentais em Ibn Arabi? A “unicidade do Ser” (wahdat al-wujud) aí está posta desde o início. A ideia que é a evidência mesmo de Deus que o esconde a nossos olhares é um leitmotiv da doutrina akbariana3 . A necessidade, para o wali perfeito de retornar às criaturas, de fazer seguir a “ascensão” de uma “descensão” — tema que será retomado no fim do tratado — é de pronto afirmada.

“Vou explicar de pronto — que Alá te assista por sua graça! — como se caminhar para Ele, depois como se fazer a chegada e como se manter parado diante de Ele, como se assentar sobre o tapete da contemplação de Sua face e o que Ele diz então. Em seguida te explicarei como se retornar de Ele até o grau de Seus atos, por Ele e para Ele, e também como se dissolver em Ele — mas esta estação espiritual é inferior àquela do retorno.

“Saiba, ó irmão muito caro, que se os caminhos são inumeráveis, só há um que conduz a Deus; e solitários (afrad) são aqueles que o percorrem! Todavia, embora esta via seja única, suas formas são diversas, à medida da diversidade dos estados próprios aos viajantes. Elas variam, com efeito, segundo a constituição destes últimos é harmoniosa ou não, segundo sua motivação é perseverante ou sujeita à eclipse, segundo a intensidade ou a fraqueza de sua energia espiritual, segundo a retitude ou a obliquidade de sua resolução, segundo sua orientação é pura ou viciada (…)

“A primeira coisa sobre a qual convém que te esclareçamos é o conhecimento das “moradas” (al-mawatin), de seu número e daquilo que te impõe aquela que tenho em vista aqui”. Essas “moradas”, que são inumeráveis, Ibn Arabi as faz seis. A primeira é aquela do A lastu bi-rabbikum? (“Não sou Eu vosso Senhor?”, Corão 7:172), quer dizer do Pacto primordial (mithaq) pelo qual as criaturas recorreram solenemente a suserania divina. A segunda é a morada deste baixo mundo. A terceira é o mundo intermediário (barzakh) para o qual vamos “depois da pequena e da grande morte”: este barzakh, declara alhures Ibn Arabi, não é “nem existente, nem inexistente; não pode nem ser afirmado, nem negado. E não é outra coisa que o khayal, o imaginal”. Ele encerra tudo aquilo que é e tudo aquilo que não é, ou tudo aquilo que contém uma contradição interna (o “possível-impossível”, o “quadrado-redondo”). O sem-forma aí toma forma e é o que, nos sonhos do homem ordinário ou nas visões do gnóstico, torna possível que a ciência se apresente como leite, vinho ou pérola, o islame como uma cobertura ou um pilar, o Corão como mel ou manteiga e Deus sob a aparência do homem. A “pequena norte” é a morte iniciática (al-mawt al ikhtiyari), que é voluntária, enquanto a grande é aquela que é a sorte comum a todos os seres. A quarta morada é aquela do “Ajuntamento sobre a terra do despertar” (alusões ao Corão 79:14) onde os homens serão reunidos na espera do Juízo. A quinta é aquela do paraíso e do Inferno. A sexta é a “duna da visão” (alusão ao Corão 73:14) que é “uma colina de musgo branco sobra a qual se encontrarão as criaturas quando da visão de Deus (na vida futura)”.


NOTAS

1 Ibn Arabi distingue quatro tipos de salik (bi-rabbihi, bi-nafsihi, bi-l-majmu, salik la salik) e cinco tipos de suluk: minhu ilayhi (de teofania em teofania); minhu ilayhi fihi (de Nome em Nome em um Nome); minhu la fihi wa la ilayhi; ilayhi la minhu wa la fihi (cujo modelo corânico é a fuga de Moisés); la minhu wa la ilayhi (caso do asceta, al-zahid).
2 Sobre o “retorno para as criaturas” que será de novo abordado, remete-se ao capítulo 45 dos Futuhat, e também ao “Ensinamento espiritual” de Junayd
3 Sobre o tema do “véu” ver Futuhat I e IV. Ver também o hadith sobre os setenta mil véus de luz e de trevas, assim como o comentário de Al Ghazali no “Tabernáculo das Luzes”.

Ibn Arabi (1165-1240), Michel Chodkiewicz