Mas voltemos agora à distinção dos dons (divinos) em dons essenciais e em dons conformes aos Nomes. Para aquilo que é dos favores e dons essenciais, eles só são concedidos em virtude de uma revelação (ou irradiação: tajalli) divina; ou, a Essência só se revela sob a “forma” da predisposição do indivíduo que recebe esta revelação; e jamais se produz outra coisa. Portanto, o sujeito recebendo a revelação essencial verá apenas sua própria “forma” no espelho de Deus; ele não verá Deus — é impossível que ele O veja —, sabendo de certo que ele só vê sua “forma” em virtude deste espelho divino. Isto é totalmente análogo aquilo que tem lugar em um espelho corporal: aí contemplando formas, não vês o espelho, sabendo de certo que só vês estas formas — ou tua própria forma — em virtude do espelho1. Este fenômeno, Deus o manifestou como símbolo particularmente apropriado a Sua revelação essencial, para que aquele a quem Ele Se revela saiba que ele não O vê; não existe símbolo mais direto e mais conforme à contemplação e à revelação da qual se trata.2. Tente portanto tu mesmo ver o corpo do espelho ao mesmo tempo que olhas a forma que aí se reflete; não o verás jamais ao mesmo tempo. Isto é tão verdadeiro que alguns, observando esta lei das formas refletidas nos espelhos (corporais ou espirituais), pretenderam que a forma refletida se interpõe entre a vista do contemplante e o espelho mesmo; isto é o que alcançaram de mais alto no domínio do conhecimento espiritual; mas em realidade a coisa é tal como dissemos, [a saber que a forma refletida não oculta essencialmente o espelho, mas que este a manifesta]. De resto, já temos explicado este ponto em nosso livro das “Revelações de Meca” (al-Futuhat al Makkiyah). Se saboreares aquilo, saboreias o extremo limite que a criatura como tal possa atingir (em seu conhecimento “objetivo”); não aspire portanto além e não canse tua alma para ir além deste grau, pois não há aí, em princípio e em definitivo, que pura não existência (a Essência sendo não manifestada).
Segundo a terminologia advaita, eu é o Sujeito — ou a Testemunha (sakshin) — absoluto que não se tornará jamais “objeto” de conhecimento. É Nele ou por Ele que toda coisa é percebida, enquanto que nisto Ele permanece sempre o plano-de-fundo inalcançável. — “Os olhares não O atingem, mas é Ele que atinge os olhares”, diz o Corão (VI, 103). ↩
Na sua “Divina Comédia”, Dante indaga à Adão, que lhe explique sua visão intemporal da natureza dos seres em Deus:
[Porque eu a vejo no espelho verídico
“Perch’io la veggio nel verace speglio
Che fa di sè pareglio all’altre cose,
E nulla face lui di sè pareglio.”
Paradiso, XXXVI, 106 ss.
Que faz dele-mesmo o paredro de outras coisas,
E que nenhuma coisa não faz de si o paredro.] ↩