Frances Yates — Giordano Bruno e a Tradição Hermética
Tradução de Yolanda Steidel de Toledo
(1) A Gênesis egípcia. Poimandres. (Corpus hermeticum, I;1 em parte gnose otimista e, em parte, dualista.)
Poimandres, que é o nous ou mens divina, aparece para Trismegisto quando seus sentidos corporais estão presos a um sono muito pesado. Trismegisto expressa a aspiração de conhecer a natureza dos seres e de conhecer a Deus.
O aspecto de Poimandres muda, e Trismegisto passa a ter uma visão toda luminosa e sem limites. Aparece, então, uma espécie de obscuridade ou escuridão, da qual surge um tipo de fogo acompanhado de um som indescritível, como um ígneo gemido, enquanto a luz despede uma sagrada Palavra, e um fogo sem mescla salta da região úmida para o sublime; e o ar, sendo luz, segue o sopro de fogo. “Essa luz”, diz Poimandres, “sou eu, nous, teu Deus. . . e a luminosa palavra que flui do nous é o Filho de Deus.”
Trismegisto, nesse momento, vê em si mesmo, em seu próprio nous ou mens, a luz e o incalculável número de Potestades, um mundo ilimitado, e o fogo envolto numa força onipotente. Pergunta a Poimandres: “De onde vêm, então, os elementos da natureza?”, e Poimandres responde: “Da Vontade de Deus, que em si recebeu a Palavra. . . E o nous-Deus, existindo como luz e vida, trouxe à luz um segundo nous-Demiurgo, que, sendo o deus do fogo e do sopro, formou os Governadores, em número de sete, que envolvem com seus círculos o mundo sensível”. O Mundo uniu-se ao »o«J-Demiurgo, sendo da mesma substância, e o nous-Demiurgo, conjuntamente com a Palavra, move os Sete Governadores, dos quais depende todo o baixo mundo elementar. Depois de o «nous-Demiurgo-Palavra e sopro de fogo haver formado e posto em movimento os Sete Governadores, passa o relato de Trismegisto à criação do Homem, que é ação direta do nous-Pai.
“Ora, o nous, Pai de todos os seres, sendo vida e luz, trouxe à luz um Homem semelhante a Ele mesmo, o qual amou como seu próprio Filho. Porque o Homem era belo, tendo reproduzido a imagem de seu Pai; e foi na verdade sua própria forma que Deus amou e a quem deu todas as suas obras. Ora, ao ver a criação que o Demiurgo havia formado no fogo, o Homem desejou também produzir uma obra, e para isso recebeu permissão do Pai. Assim, tendo entrado na esfera demiúrgica, na qual teve pleno poder, o Homem viu as obras de seus irmãos, os Governadores o amaram, e cada qual lhe deu uma parte de seu próprio governo. Depois, tendo conhecido sua essência e recebido participação em sua natureza, ele desejou atravessar a periferia dos círculos e conhecer o poder d’Aquele que reina sobre o fogo.
“O Homem, que possuía pleno poder sobre o mundo dos seres mortais e animais, inclinou-se sobre a armadura das esferas, depois de passar por seus invólucros, e mostrou à Natureza abaixo a bela forma de Deus. Ao ver que havia nele a beleza inexaurível e toda a energia dos Governadores, aliada à forma de Deus, a Natureza sorriu com amor, pois havia visto a forma maravilhosamente bela do Homem, refletida na água, e, na terra, sua sombra. E ele, tendo visto essa forma semelhante à sua na Natureza, refletida na água, amou-a e quis estar com ela. No momento em que o desejou, ele o realizou, e habitou a forma irracional. Então, a Natureza, tendo recebido seu amado, abraçou-o e uniram-se, pois ardiam de amor.”
O Homem, tendo tomado um corpo mortal a fim de viver com a Natureza, é o único dos seres terrestres a possuir uma dupla natureza, mortal pelo corpo e imortal do ponto de vista do Homem essencial. Ainda que seja imortal e tenha poder sobre todas as coisas, tem pelo próprio corpo a condição da mortalidade, sendo sujeito ao Destino e escravo da armadura das esferas. “Agora”, disse Poimandres, “revelarei um segredo até agora oculto. A Natureza, unida ao homem no amor, produziu um prodígio espantoso. O Homem, como ficou dito, tinha em si a natureza da assembleia dos Sete, composta de fogo e sopro. A Natureza, pela sua união com o Homem, deu à luz sete homens, correspondentes à natureza dos Sete Governadores, entre os quais havia machos e fêmeas, e que se elevaram para o céu.” A geração dos sete primeiros homens ocorreu do seguinte modo: fêmea era a terra, água, o elemento generativo; o fogo levou as coisas à maturidade, e do éter recebeu a Natureza o sopro vital e produziu corpos com a forma do Homem. Quanto ao Homem, emergindo da vida e da luz que ele fora, mudou-se para alma e intelecto, sendo que a vida se transformou em alma, e a luz, em intelecto. E todos os seres do mundo sensível permaneceram nesse estado até o fim do período.
No fim do período, continua Poimandres, foi quebrado, pela vontade de Deus, o elo que ligava todas as coisas. O Homem e os animais, que até então haviam sido ao mesmo tempo machos e fêmeas, separaram-se em dois sexos, e Deus pronunciou a frase “Crescei e multiplicai-vos”. Então, a Providência, através do Destino e da armadura das esferas, estabeleceu as gerações, e todas as coisas vivas se multiplicaram, cada qual segundo sua espécie.
Poimandres aconselha Trismegisto sobre o modo como há de se comportar na vida, em vista do mistério que lhe foi transmitido. Deve conhecer a si mesmo, visto que “aquele que a si se conhece a si se dirige”, isto é, dirige-se para sua verdadeira natureza. “Tu és luz e vida como Deus Pai, de quem nasceu o Homem. Se, portanto, aprenderes a conhecer a ti mesmo como feito de luz e vida. . . retornarás à vida.” Só o homem que tem intelecto (e nem todos o têm) pode, assim, conhecer a si mesmo. E Trismegisto deverá viver com pureza e santidade, agradando ao Pai por meio de amor filial e enunciando bênçãos e hinos.
Trismegisto agradece a Poimandres por ter-lhe revelado todos esses fatos, mas quer saber também sobre a “ascensão”. Poimandres explica que, ao morrer, o corpo se dissolve em seus elementos, mas o homem espiritual se eleva através da armadura das esferas, deixando em cada uma delas uma parte de sua natureza mortal e o mal nela contido. Depois, uma vez inteiramente desnudado de tudo o que as esferas lhe imprimiram, ele entra na natureza “ogdoádica”, ouve as Potestades cantando hinos a Deus e mistura-se a elas.
Trismegisto é, então, despedido por Poimandres, “depois de ser investido de poderes e instruído sobre a natureza do Todo e da visão suprema”. Inicia, assim, sua pregação ao povo, incitando-o a abandonar seus erros e a tomar parte na imortalidade.
E Trismegisto “gravou dentro de si o benefício de Poimandres”.2
C. h., I, págs. 7-19; Ficino, págs. 1 837-1 839. ↩
“Ego autem Pimandri beneficium inscripsi penetralibus animi…” (tradução de Ficino, pág. 1 839). ↩