Na visão do filósofo Raymond Abellio (RASA, AANG e AMNG), um processo mais denso e complexo se dá na constituição de um objeto técnico, que é o processo de gênese ou de instituição do “eu” que deste objeto se apropria. Um processo em que “sujeito” e objeto técnico se configuram, sob tensão permanente, como polos de uma díade, em co-gênese mútua. Em outras palavras, “eu” e técnica são, neste processo, o zênite e o nadir, ou seja, os extremos de um eixo ordenador na gênese e desenvolvimento de ambos.
Esse processo, cujas etapas respondem pela instituição do “eu” e pela constituição do objeto técnico, simultaneamente, responde também pela ascensão progressiva da Razão a um determinado lugar e papel, no indivíduo e na sociedade.
Dado o próprio caráter “iniciatório” do processo de instituição do “eu”, Abellio identifica suas etapas a “ritos de passagem” nesta gênese. Usando, com reservas, uma terminologia religiosa, Abellio denomina as etapas desta gênese “sacramentos”, que etimologicamente diríamos que podem significar “fazimentos sagrados”, parafraseando Darcy Ribeiro.
Assim sendo, entre o momento da etapa de concepção e o da etapa de nascimento, quer dizer durante a gestação propriamente dita, segundo Abellio, faço parte das “águas indiferenciadas” no seio de minha mãe. Não sou “ser-no-mundo” mas “ser-antes-do-mundo”. Embora apenas indicativa, pode soar confusa esta colocação de Abellio, pois se apropria de uma expressão de Heidegger, “ser-no-mundo”, que poderia ser aplicada a todos os “rituais de passagem” analisados por Abellio, dependendo do entendimento que se tenha de mundo, mundanidade.
Para Abellio, cabe aí uma questão: que “eu” é este que aqui fala e que tem ele de comum com este outro “eu”, imerso nas “águas indiferenciadas”? De imediato deparo com a contradição ou ilusão de toda explicação genética, que não poderia jamais ser uma explicação radical, na medida que se apoia sempre sobre o saber atual disto mesmo que a gênese deve explicar. De imediato, me vejo tratando do inacabado em termos de acabado, e digo inocentemente: eu fui ou eu sou, enquanto eu resto a ser.
É um fato: o “eu” que aqui fala é o “eu” atual, tal qual se tornou e ainda se torna. Ele apenas lança um olhar objetivante, e, por conseguinte, alienante, sobre este embrião de onde veio e cujo olhar próprio ele, daqui onde se encontra, não pode afirmar conhecer. Embrião cujo “mundo”, “mundanidade própria”, de onde observo, desconhece por completo. E nada, com efeito, não me permite dizer que o embrião também não tenha também seu olhar, embora este seja para este eu aqui e agora, como se jamais tivesse sido, ou, pelo menos esteja encoberto por camadas e camadas de novas vivências.
Assim, toda reserva deve ser feita desde o inicio sobre o caráter imperfeito da visão deste “eu”, que é, pode-se dizer, duplamente inocente, no sentido que é inocentemente objetivo, pois “vê”, de fora, o embrião do qual originou, como um objeto banal semelhante a todos os embriões humanos, e também uma visão inocentemente subjetiva, pois se associa a uma visão “histórica”, provavelmente provisória e em todo caso localizada e limitada ( Abellio, RASA, p. 37 ).
Dessa maneira, segundo Abellio, percebe-se que todo discurso radical sobre a gênese do “eu”, ou seja, sobre sua plena instituição, em sua dimensão espacial e temporal, será, portanto, um convite a nos fazer sair da objetividade e da subjetividade ingênuas, e pode-se mesmo pensar que esta necessidade que temos de reconhecer em tudo que vemos, estruturas invariantes, e mesmo esta confiança intuitiva que temos no termo estrutura, indicam uma certa crença na possibilidade de “ir além” das aparências.
Retomando as etapas ou os sacramentos, definidos por Abellio, temos primeiramente, a “Concepção”, enquanto evento que me constitui como “ser-no-mundo”, porém um mundo ainda pouco diferenciado no seio de minha mãe, guardando uma certa analogia com as “águas indiferenciadas” do Gênesis bíblico.
Ao final da gestação tem lugar a segunda etapa, o “Nascimento”, por meio do qual se dá meu posicionamento diante do mundo, criando a primeira distancia, o primeiro Mit-sein (ser-com) sem que “eu” o saiba, obrigatoriamente. Meu nascimento é uma abertura da transcendência diante de todos os olhos que me cercam, embora ainda não o seja, para os meus próprios olhos.
Durante a infância o poder separador de meus sentidos desenvolve-se, gradativamente ampliando minha distância do mundo, em outros termos, intensificando esta transcendência iniciada com o Nascimento. Nas águas indiferenciadas, nenhuma separação me era perceptível; a vida de minha mãe era minha vida, sua morte geralmente minha morte, e meu “eu”, neste caso se dissolvia no dela.
O Nascimento significa uma separação, fundando o mundo “para-mim”, mas ainda de forma difusa, sob meu olhar ainda despreparado, pois para meus sentidos, que começam a “tatear”, e que nem reconheço ainda como meus, este mundo ainda mal me pertence. Vejo uma série de modos mais e mais complexos do mundo; não há apenas um mundo, mas uma série indefinida de “modos” do mundo.
Neste sentido, o sacramento seguinte, o “Batismo”, seria a etapa na qual, justamente, me torno consciente de meus sentidos. Onde adquiro a capacidade de perceber que percebo e onde uma relação é assim conscientemente percebida por mim, entre “eu” e mundo. Ou seja, quando desperta a consciência das sensações, ou dos próprios sentidos, mediadores entre sujeito e objeto, e uma relação passa a ser conscientemente percebida entre homem e mundo de objetos.
No Batismo, intensifica-se a consciência da relação sujeito-objeto, em detrimento da antinomia de seus polos (sujeito e objeto), em outros termos, reconhece-se, mais e mais, que a noção de objeto guarda sempre subjacente a si, a de sujeito, e vice-versa.
A etapa seguinte, a “Comunhão”, intensifica a experiência do “Batismo”. Por meio dela, aprofunda-se mais essa “percepção da percepção”, transfigurando a relação sujeito-objeto de tal maneira, que tem início uma nova percepção: a de sujeito em um mundo de sujeitos, e não apenas de objetos. De fato, manifesta-se um novo modo de presença do “eu” e de atuação da Razão, que permite ao ser humano reconhecer também a importância da intersubjetividade na continuidade da gênese do “eu”; agora assegurada pela postura de sujeito, em um mundo de sujeitos…
Segundo Abellio, as etapas não são todas obrigatoriamente percorridas, até sua conclusão, a plena instituição do “eu”. Da mesma forma, as passagens de uma para outra não são instantes, mas transcursos. Segundo uma visão justa, não existiria qualquer gênese linear, pois tudo estaria se dando ao mesmo tempo, o que tornaria impossível todo discurso e mesmo toda denominação, obrigatoriamente sujeitas a linguagem, em seu percurso linear de natureza espaço-temporal. Com efeito, para Abellio, nomear é estabelecer, ao mesmo tempo, não apenas um espaço de conexões, mas também caminhos e um tempo de percurso, nestas mesmas conexões.
Das águas indiferenciadas até a instituição do “eu”, pode-se notar que tudo que percebemos, ou imaginamos, ou pensamos, não é o que somos radicalmente, enquanto pura subjetividade. Não somos estes objetos que percebemos, não somos as imagens que se oferecem, não somos as noções que pensamos, nem o discurso que sustentamos. Como pura subjetividade, profere-se “eu”, e em seguida, percebe-se, imagina-se e cogita-se, alguma coisa, que é objeto em relação a este “eu”, ou seja, em relação a este princípio radical de cada subjetividade, este ato de ser. (Allard l’Olivier, 1977 [AOIC])
Quanto à constituição progressiva, após a etapa de “Concepção”, do chamado “ob-jeto”, entendido como “isto-posto-adiante” do “eu” (este último sendo o princípio radical que atribui existência ao objeto), é preciso compreender que este objeto é sempre definido (nomear um objeto, com efeito, é torná-lo uma ferramenta, nem que seja um instrumento de linguagem; mas a utilidade nada mais é que uma banalização da verdade, ela não revela o objeto ou o ente enquanto tal), no seu ser, pelo estabelecimento de um conjunto aberto de relações, lhe conferindo funcionalidade, utilidade, mas sem revelá-lo em todo seu ser, que também guarda em si o mistério de meu próprio ser, enquanto subjetividade pura. Esta relação que une subjetividade pura ou radical a objeto, pode ser denominada intenção, como preconiza Husserl; o ser desta intenção, o ser do objeto e o ser do sujeito, a subjetividade, se configuram, portanto, como momentos ou modalidades da intencionalidade ((“A intencionalidade sendo a relação sujeito-objeto, não se deixa atribuir a qualquer dos dois termos da relação.” ( Fink, 1952, p. 75 ) ) (Allard L’Olivier, AOIC p. 47 ).
Na tentativa de melhor elucidar as etapas do processo em que, simultaneamente, se dá a constituição do objeto técnico (prático ou teórico) e a instituição do “eu”, Abellio propõe uma análise da percepção. A exemplo do que fez Merleau-Ponty (1945) na Fenomenologia da Percepção, Abellio recupera o significado da percepção na identificação de uma estrutura fenomenológica de grande repercussão. Através da análise da percepção evidencia-se também a importância do “corpo”.
Na atitude natural, me vejo simplesmente confrontado ao mundo, face a face com ele. Vejo tal objeto, um livro, por exemplo, posto sobre a minha mesa, e a visão não vai além desta relação simples: este livro e eu, o par: objeto percebido e o sujeito “percebedor”. No entanto, é preciso que examinemos mais de perto o desenrolar desta percepção. Sigamos o percurso proposto por Abellio:
- primeiro, o mundo deve ativar para mim um objeto até então passivo; não cabe aqui um debate sobre a primazia do mundo ou do corpo na percepção, ou seja, quem dispara a percepção; trata-se de um debate semelhante aquele que tenta descobrir quem nasceu primeiro, o ovo ou a galinha; o fato é que uma espécie de corrente se estabelece entre o mundo e o objeto que se destaca dele; o livro que vejo é um objeto do mundo, e para que seja visível, deve se destacar de alguma maneira sobre um fundo mais ou menos distinto; este fundo, o mundo enquanto suporte de todos os objetos, não recai sobre a minha visão, mas é o horizonte que a torna efetiva, a sustenta;
- segundo, Abellio imagina que um objeto qualquer, se destacando do mundo, ou sendo recortado do mundo, se torna por conseguinte ativo em relação a este último, que, por sua vez, se torna passivo; o mundo se mantém assim enquanto fundo mais ou menos indistinto, verdadeiro suporte unitário e global dos objetos; ou seja, condição a priori da emergência deste mesmo objeto; neste sentido, é que o mundo se apresenta como “pano de fundo”, horizonte de objetividade, não “visível” em si, mas que assegura, por sua vez, a visão do objeto …
- objeto se destacando, tomando sentido (um jogo de palavras que indica tanto o fato do objeto ganhar presença nos órgãos de sensação, como também significado), rejeitando uma certa indistinção, com o resto do mundo, estabelece com este último, no entanto, uma primeira relação do tipo Objeto/Mundo; pode-se mesmo dizer que tal objeto se tornou ativo em relação ao resto do mundo, considerado então passivo; existe assim, e sempre existirá, uma dualidade forma-fundo do lado do percebido…
- esta mesma dualidade também se instala do lado daquele que percebe, o sujeito; um ou mais sentidos (visão, audição, tato etc.) se abrem e se tornam ativos, se destacando do fundo passivo, em repouso, do corpo; no exemplo do livro sobre a mesa, é preciso que minha vista, que enxerga o livro e se interessa especialmente nele, se abra e se torne ativa (+), sobre o fundo posto em repouso de meu corpo; este se torna passivo (-) e suas demais funções se fundem no fluxo de uma certa indistinção; em nossa figura, uma rotação tem lugar, do objeto para a vista, ou seja, um sentido se cria;
- a vista se tornando ativa, acolhe o objeto, mas o fato capital é que, sob a excitação da vista, uma corrente se estabelece da vista (+) para o corpo inteiro (-); o corpo, anteriormente feito passivo pela abertura da vista, se torna ativo, mas a um grau de atividade maior do que antes do inicio da percepção; do lado do sujeito, forma-se assim uma segunda relação do tipo Sentido/Corpo, em interação com a primeira relação Objeto/Mundo…
- meu olhar deu o objeto ao corpo e meu corpo inteiro se apropria do objeto, o tornando um instrumento ou ferramenta; esta apropriação deve ser entendida como uma intensificação do objeto; em outros termos, meus sentidos, por seu poder discriminador, têm por missão distinguir, enfocando os objetos do mundo, mas meu corpo inteiro tem por missão, por seu poder integrador, reintegrar em si, sob a forma de instrumentos ou ferramentas, estes objetos distintos, e de assim se abrir a um novo modo do mundo; com referencia a figura, por uma segunda rotação, em sentido inverso da primeira, o corpo, novamente ativo, como no inicio da percepção, fecha o circulo se voltando para o mundo feito então passivo; o corpo, graças aos novos poderes, devidos ao instrumento ou ferramenta incorporado, vai animar mais uma vez o mundo, que volta a se tornar ativo, promovendo um novo ciclo, com novas emergências de objetos…
- tanto o objeto, quanto a vista são, em outros termos, emergências locais de uma realidade global, que devem vir a ser “re-enraizadas” ou arriscam voltar a se dissolver no mundo e no corpo, respectivamente;
- a constituição comum de objeto e de sujeito, através dessa análise da percepção, indica que, do lado do objeto, temos uma relação ou razão Objeto/Mundo e, do lado do sujeito, outra razão Sentido/Corpo; estas razões se associam então na forma de uma proporção que as combina da seguinte forma: Objeto/Mundo = Sentido/Corpo; assim, como já havia reconhecido Husserl, a colocação em relação de dois termos ou de dois polos, e somente dois, como sujeito e objeto, é uma noção ingênua, pois não há polos ou termos que sejam estáveis na gênese do “eu”; uma relação deste gênero oculta na verdade a emergência de uma proporção, ou seja, de um ciclo de relações, como na Figura 1 — Estrutura da percepção, levando à multiplicação, à intensificação e à transmutação dos polos ou dos termos..
- essa proporção não é fechada nem estável, e seus termos não são fixos; é um proporção não isolável, tomada e levada em um movimento dialético; pelo esquema da figura, como lembra Abellio, é possível notar que o processo de percepção “crucifica” o “eu”, a cada ciclo, no espaço-tempo; o que importa, no entanto, é compreender bem o sentido da passagem do termo à razão ou relação, enquanto acoplamento de termos, e da razão à proporção, enquanto acoplamento de razões; não importa aqui discutir quem comanda toda a operação, mundo ou pessoa.
Como dito anteriormente, alguns dos movimentos indicados na Figura acima se identificam com as etapas do processo de gênese do “eu”; assim sendo, primeiro temos a relação mundo ativo e objeto ainda passivo (representado na Figura acima pelo eixo mundo-objeto, ainda sem a corrente — a seta — do mundo para o objeto), ou seja, as “águas indiferenciadas” como ponto de partida, de onde os objetos se ativam por uma inversão de polaridade com o mundo. Assim os objetos se destacam de um mundo, que ainda predomina como “águas indiferenciadas”, é a etapa da “Concepção” do “eu”; um “eu” apenas capaz de percepção em potência (“eu” ainda indiferenciado, comungando das “águas indiferenciadas”).
A etapa em que o objeto feito ativo em relação ao mundo, é acolhido pela vista ainda passiva, é o “Nascimento” do “eu”, e da percepção. O “eu” ainda é pouco diferenciado, mas o corpo e os sentidos, em contato com o mundo, fazem-no “vir ao mundo”. Nesta etapa, pela Figura 1, se dá uma “rotação” pela qual o objeto é tomado pela vista, ou outro sentido qualquer, que pode ou não se interessar pelo objeto, ou seja, pode deixá-lo na indeterminação do mundo, ou recolhê-lo e efetivamente tomá-lo, ao se tornar um sentido ativo em relação ao corpo, feito então passivo.
Enfim, a partir da incorporação do objeto, enquanto ferramenta ou instrumento, para novas reapropriações do mundo, ou seja, da universalização do objeto-utilitário, temos o “Batismo” do “eu”. O corpo atinge assim a plena realização da percepção, em conjunção com outras atividades cognitivas e afetivas. A etapa seguinte, “Comunhão”, representa a reiteração do corpo com o mundo, mas de um corpo ora estendido pelo instrumento ou ferramenta, assim comungando com um novo modo de mundo.
Abellio faz algumas constatações interessantes, em função da ideia de “proporção” que agora se impõe à simples e ingênua relação sujeito-objeto, através desta análise da percepção. Primeiro, toda relação ou razão de dois termos se exprime pela presença implícita, nesta mesma relação, de um terceiro termo, que não se revela. Este terceiro termo, imanente à relação entre os outros dois, é a consciência.
Dada as fortes conotações deste termo, preferimos denominá-lo a “visão”. Com efeito, a consciência expressa pela ontogenia do “eu” se dá através da visão. O termo “visão” não somente se aplica àquela intuição obtida pela vista, mas se refere também a qualquer percepção sensorial além da visual, como olfato, tato, sabor e audição. Este termo se aplica, muitas vezes, a uma intuição intelectual, sem a ajuda dos sentidos, como nas matemáticas. Ou seja, qualquer preensão de um objeto por meio dos sentidos abertos sobre o mundo, como toda espécie de preensão intelectual que realize um conhecimento, se enquadra sob a idéia que ora expomos. O alemão Wissen e as palavras da mesma família, die Weisheit, o saber, a ciência, der Weise, o sábio, derivam de visum, supino do latim videre. Assim como eidos, forma, no sentido de maneira de ser, deriva de FID, raiz vizinha do indo-europeu VID que significa ver: de onde decorrem as palavras sanscritas veda, vidya (conhecimento). A raiz VID significa ao mesmo tempo ver e saber. ( Allard L’Olivier, 1977, AOIC p. 37 )
Voltando à razão ou relação, pela discriminação dos termos postos em relação, a consciência justamente os constitui, e assim também se institui. Ao expressar toda relação, seja a mais ampla como a do tipo Corpo/Mundo, pela combinação de dois signos, Corpo e Mundo, separados por um traço horizontal, o simbolismo algébrico ou aritmético (/) reconhece este fato: a relação não é apenas de dois termos, mas de três, e o traço de separação-ligação (/) nada mais é do que um símbolo deste terceiro termo, em sua dupla função de dissociação redutora e de reintegração, ou em outras palavras, de análise e de síntese.
A função de dissociação, de redução ou de separação, em outras palavras a função analítica, é a primeira que está ligada aos sentidos e particularmente à vista. Ligada assim aos sentidos, ela estabelece a distância no mundo, a amplitude, ou a extensão, que é, por sua vez, de essência quantitativa, ou seja, a possibilidade de mensuração quantitativa em conformidade com a própria natureza do espaço.
A função de síntese, de integração, retoma a amplitude, a extensão, a quantidade, lhe auferindo uma nova propriedade: afinal, da separação se pode ordenar, se hierarquizar, e deste modo se atribuir qualidades ao mundo. Pela atuação destas funções, de análise e de síntese, a relação original Sujeito/Objeto, ou melhor posto Corpo/Mundo, pode vir a se amplificar e se intensificar, vindo a se constituir em uma proporção do tipo Objeto/Mundo = Sentido/Corpo.
Nessa forma algébrica da proporção, Abellio chama a atenção para o sinal de igualdade, dois traços superpostos, e lembra que este deve ser entendido como um símbolo da necessária leitura simultânea de duas razões ou relações, em lugar de sua leitura linear ou em sucessão.
Entretanto, para esta leitura simultânea, é preciso que a consciência se transfigure de uma consciência empírica, dotada de um modo de visão adequado para a percepção de razões, ou relações de termos, para uma consciência transcendental, dotada de um modo adequado para a efetivamente ver proporções.
É evidente que a Razão, como seu próprio nome indica, tem seu campo limitado à visão de relações ou de razões. Por conseguinte, cabe a consciência transcendental iluminar e orientar a Razão ou o logos, de acordo com sua capacidade de analisar e sintetizar o mundo. Neste exercício permanente do logos, perscrutando o mundo sob a conduta intensiva e voluntária da “visão”, pode-se efetivamente passar da simples análise e síntese de relações à análise e síntese de proporções.
Ao empregar o termo logos, ou sua tradução latina ratio, cabe lembrar que a atividade analítica que separa e divide e a atividade sintética que reúne e liga, se encontram sob as duas séries de significações do verbo legein; do qual derivou logos, significando razão e linguagem. Alguns autores como Michel Fattal pensam que Parmenides determinou o destino do Ocidente, não somente pelo fato de atribuir ao logos o poder de dizer a verdade, mas igualmente pelo fato de lhe conferir o poder racional de separar o ser do não-ser a fim de ascender à “ideia clara e distinta”, àquela da pureza do ser ( Fattal, 1987, p. 14 ).
Ainda para uma melhor compreensão do pensamento que estamos procurando apresentar, seria preciso retomar algumas questões, como as noções clássicas de razão ou relação, e de proporção. Desde os pitagóricos, certas correntes filosóficas, vêm tentando promover a “visão” para que esta conduza a Razão em direção ao sentido da Unidade, especialmente através do pensamento matemático.
Neste sentido, os pitagóricos acreditavam que seria possível uma aproximação da compreensão da Unidade, através de uma sucessão de relações proporcionais. Uma proporção, como vimos, é formada por razões, e uma razão é uma comparação entre diferentes tamanhos, quantidades, qualidades, ou ideias, expressa sob a fórmula a/b, ou a:b ( Lawlor, 1991 ).
Uma razão, portanto, constitui a medida de uma diferença, uma diferença para qual pelo menos uma de nossas faculdades sensoriais pode responder. Desta maneira, a razão a:b é uma noção fundamental para todas atividades de percepção.
Uma proporção, entretanto, é algo mais complexo, pois é uma relação de equivalência entre duas razões, quer dizer, um elemento é para um segundo elemento, como um terceiro elemento é para um quarto: a é para b como c é para d, ou a:b::c:d. Logo, a proporção, conhecida entre os antigos gregos como analogia, representa um nível de inteligência mais sutil e profundo que a modesta razão, que é uma resposta direta a uma simples diferença.
Buscando uma maior aproximação da Unidade, os antigos gregos buscaram limitar a proporção a apenas três elementos, ou termos. Assim um elemento é para um segundo elemento assim como o segundo elemento é para um terceiro, ou seja, a:b::b:c. Aqui os extremos são reunidos por um mediador, b. Os gregos a chamavam de proporção contínua de três termos, e isto indica uma inovação na simbolização dos processos de percepção. Nicômaco e outros filósofos consideravam esta como a única proporção que pode ser considerada como uma analogia.
Buscando uma compreensão maior da Unidade, os filósofos gregos descobriram uma proporção com apenas dois termos. Isto ocorre quando o termo menor é para o termo maior assim como o termo maior é para o menor mais o maior, ou seja, a:b::b:(a+b). O termo (a+b) se apresenta assim como uma totalidade ou unidade, composta pela soma dos outros dois termos.
Historicamente, a esta única proporção geométrica de dois termos foi dado o nome de proporção áurea, sendo designada pela vigésima letra do alfabeto grego phi (?), embora conhecida por culturas anteriores. Trata-se de uma proporção; não um número, mas uma proporção, com a pretensão de ser fundada pela, e de estar fundando, a experiência de conhecimento operada pelo logos.
Se considerarmos a proporção de Abellio no seguinte formato Sentido/Corpo = Objeto/Mundo, temos uma verdadeira analogia quando a transformamos em Sentido/Corpo = Corpo/Mundo, onde podemos buscar a proporção áurea, em conformidade com uma visão mais fortemente subjetivista, obtendo a proporção: Sentido/Corpo = Corpo/(Sentido+Corpo).
Por outro lado, partindo de novo da proporção de Abellio, mas desta feita dando a primazia ao mundo: Objeto/Mundo = Sentido/Corpo, podemos obter, dentro do que poderíamos qualificar de uma visão “objetivante”, uma analogia expressa pela proporção Objeto/Mundo = Mundo/Corpo. Em uma visão radicalmente objetivista, podemos chegar até a outra proporção áurea: Objeto/Mundo = Mundo/(Corpo+Mundo).
Bibliografia:
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ABELLIO, Raymond. Approches de la nouvelle Gnose. Paris: Gallimard, 1981
ABELLIO, Raymond. Manifeste de la nouvelle Gnose. Paris: Gallimard, 1989
ALLARD l’OLIVIER. L’illumination du coeur. Paris: Ed. Traditionnelles, 1977
CARNEIRO-LEÃO, E. et all. A Máquina e seu Avesso. Rio de Janeiro: Francisco Alves, 1987
FATTAL, M.. Pour un nouveau langage de la raison. Paris: Beauchesne, 1987
FINK, Eugen. L’Analyse intentionnelle et le problème da la pensée spéculative. Paris: Desclée de Brouwer, 1952
LAWLOR, R.. “The Measure of Difference. Ratio, proportion, and analogy in mathematics and life”, Parabola XVI(4), 1991
TAYLOR, Charles. As Fontes do Self. A construção da identidade moderna. São Paulo: Loyola, 1997