Conferência dos Pássaros — A POUPA E OS PÁSSAROS
Discussão entre a Poupa e os pássaros
Todos os pássaros, um depois do outro, começaram, então, a apresentar justificações tolas. Desculpa-ME, leitor, se não as repito, pois isso demandaria muito tempo. Mas como podem tais pássaros esperar enredar o Simurgh em suas garras? Assim sendo, a Poupa retomou o seu discurso:
— Quem prefere o Simurgh à própria vida precisa lutar corajosamente consigo mesmo. Se o teu estômago não digere sequer um grão, como participarás do festim do Simurgh? Quando hesitas diante de um golezinho de vinho, como beberás a grande taça, ó paladino? Se te falta a energia de um átomo, como encontrarás o tesouro do sol? Se podes afogar-te numa gota d’água, como irás das profundezas do mar às alturas celestiais? Este não é um simples perfume, nem tarefa para quem não tem o rosto limpo.
Depois de meditar no que a Poupa lhes dissera, os pássaros voltaram a falar-lhe:
— Tu te encarregaste de mostrar-nos o caminho, tu, que és o melhor e o mais poderoso dos pássaros. Mas somos frágeis, sem penugem nem penas e, assim, como conseguiremos alcançar o sublime Simurgh? Chegar até lá já seria um milagre. Dize-nos alguma coisa sobre esse maravilhoso Ser, nem que seja por meio de um símile, senão, cegos que somos, nada perceberemos do mistério. Se houvesse alguma relação entre esse Ser e nós, ser-nos-ia muito mais fácil encetar a jornada. Mas do jeito que o vemos, ele pode ser comparado a Salomão, e nós, a formigas mendicantes. Como há de um inseto no fundo de um poço alçar-se até o grande Simurgh? Será a realeza o quinhão do mendigo?
Resposta da Poupa
Disse a Poupa:
— Ó pássaros sem aspiração! Como poderá brotar generosamente o amor num coração privado de sensibilidade? Encarar a questão do modo que parece agradar-vos redundará em nada. Quem ama parte de olhos abertos rumo à sua meta e brinca com a própria vida.
“Quando o Simurgh se apresentou fora do véu, radioso como o sol, projetou milhares de sombras sobre a terra. E quando olhou para essas sombras, surgiram pássaros em grande quantidade. Portanto, os diferentes tipos de aves que se veem no mundo são apenas a sombra do Simurgh. Sabei, pois, ó ignorantes, que, quando compreenderdes isso, compreendereis exatamente a vossa relação com o Simurgh. Refleti sobre o mistério, mas não o reveleis. Quem adquire este conhecimento afunda-se na imensidade do Simurgh, embora não deva pensar, por isso, que é Deus.
“Se vos tornardes naquilo de que vos falo, não sereis Deus, mas estareis mergulhados Nele. Um homem assim imerso transubstancia-se? Quando compreenderdes de quem sois a sombra tornar-vos-eis indiferentes à vida ou à morte. Se o Simurgh não pretendesse manifestar-sé, não teria lançado a sua sombra; se tivesse desejado permanecer escondido, sua sombra não teria aparecido no mundo. Tudo o que essa sombra produz torna-se visível. Se o vosso espírito não estiver preparado para ver o Simurgh, tampouco será o vosso coração um espelho brilhante, ajustado para refleti-lo. Na verdade, nenhum olho é capaz de contemplar-lhe a beleza e maravilhar-se dela, nem é capaz de entendimento; não podemos sentir-nos, em relação ao Simurgh, como nos sentimos em relação à beleza deste mundo. Mas por sua graça abundante ele nos deu um espelho onde se reflete; e esse espelho é o coração. Olhai para o vosso coração e nele vereis a imagem do Simurgh.”
Quando ela concluiu o discurso, os pássaros começaram a entender alguma coisa dos mistérios antigos, e da relação deles com o Simurgh. A ideia do Simurgh ergueu-os da apatia, o amor dele encheu-lhes os corações, e puseram-se a pensar no modo de desferir voo.
Os pássaros encetam a jornada
No sítio indicado para a partida, eram tantos os pássaros reunidos que ocultavam a lua e o peixe; mas quando viram a entrada do primeiro vale, ergueram-se, assustados, até as nuvens. Depois, com muito adejar de asas e penas e muito entre-animar-se, retomou-os a ânsia de desistir de tudo. Pois a tarefa que tinham pela frente era pesada e o percurso, assaz comprido. O silencio pairava sobre o caminho que se estendia diante deles, e um pássaro perguntou à Poupa por que a estrada estava tão deserta.
— Por causa do temor que inspira o rei a cuja morada ela conduz, — explicou.
O medo e a apreensão arrancaram gritos plangentes dos pássaros quando se viram diante de uma estrada sem fim, onde o vento forte do alheamento das coisas terrenas rachou a abóbada do céu. Na sua ansiedade, juntaram-se e foram pedir conselho à Poupa. Disseram:
— Não sabemos como teremos de apresentar-nos ao Rei com a devida reverência. Mas tu estiveste em presença de Salomão e conheces os primores da etiqueta. Também subiste e desceste esta estrada e voaste muitas vezes ao redor da terra. És o nosso ímã para o que der e vier. Pedimos-te, portanto, que vás ao minabar e nos instruas. Fala-nos da estrada e da corte do rei, e das cerimônias que ali se realizam, porque não desejamos fazer má figura. Além disso, todo o tipo de dificuldade nos conturba a mente e, para essa jornada, é mister estarmos livres de preocupações.