Babuchas Abu Kasem

CONTOS — BABUCHAS DE ABU KASEM

Extraído de A CONQUISTA PSICOLÓGICA DO MAL, de Heinrich Zimmer

Quem conhece a história de Abu Kasem e de suas babuchas? Elas eram tão famosas — tão proverbiais, na verdade — na Bagdá de seu tempo quanto o próprio grande avarento. Para todos, davam forma concreta à insuportável avidez dele. Pois Abu Kasem era rico, mas tentava ocultá-lo. Até o mais andrajoso mendigo da cidade se envergonharia se fosse encontrado morto calçando babuchas como aquelas, engrossadas por remendos e mais remendos. Espinho cravado na carne e história já antiga de cada um dos remendões de Bagdá, converteram-se finalmente num refrão na boca do populacho. Qualquer um que precisasse de uma palavra para designar uma coisa ridícula recorria às babuchas.

Adornado com esses objetos miseráveis — que eram inseparáveis de seu caráter público — o famoso mercador ia arrastando os pés pelo bazar afora. Um dia realizou um negócio especialmente vantajoso: comprou por uma bagatela uma enorme remessa de frascos de cristal. Alguns dias mais tarde arrematou o negócio comprando uma grande quantidade de essência de rosas de um mercador de perfumes falido. Essa combinação foi um golpe comercial verdadeiramente bom e discutiu-se muito a respeito no bazar. Qualquer outro que seguisse os usos correntes teria comemorado o fato oferecendo um pequeno banquete a algumas poucas relações comerciais. Abu Kasem, no entanto, sentiu-se inclinado a fazer algo para si próprio. Decidiu visitar os banhos públicos, lugar onde não era visto havia algum tempo.

Na ante-sala onde se deixavam as roupas e os sapatos, encontrou um conhecido que o chamou à parte e pregou-lhe um sermão sobre o estado das babuchas. Abu Kasem acabara de descalçá-las e todos podiam ver como estavam horrendas. Seu amigo lhe disse, muito preocupado, que ele estava se tornando o bufão da cidade; afinal, um negociante tão atilado deveria poder comprar um par de babuchas decentes. Abu Kasem estudou as monstruosidades de que gostava cada vez mais e falou: “Há anos venho pensando no assunto, mas não estão tão gastas que não dê mais para usá-las”. A seguir, despidos como estavam, ambos entraram no banho.

Enquanto o avarento desfrutava desse prazer, para ele raro, o cádi de Bagdá chegou também para banhar-se. Abu Kasem terminou antes do augusto personagem e retornou ao vestiário. Mas, onde estavam suas babuchas? Haviam desaparecido. No lugar delas — ou quase — estavam duas babuchas diferentes — belas, luzentes, parecendo novas em folha. Seriam um presente, uma surpresa daquele amigo que, já não suportando ver um conhecido mais rico do que ele arrastando uns farrapos gastos, quisera agradar o homem próspero com a delicadeza dessa atenção? Qualquer que fosse a explicação, Abu Kasem calçou-as. Poupar-lhe-iam o trabalho de comprar babuchas novas e de regatear-lhes o preço. Pensando nisso, com a consciência tranquila, deixou a casa de banhos.

Quando o juiz voltou, foi uma cena! Seus escravos vasculharam de cima a baixo mas não conseguiram encontrar-lhe as babuchas. Em seu lugar havia um par de repugnantes objetos remendados em que todos imediatamente reconheceram os famosos calçados de Abu Kasem. O juiz resfolegava fogo e enxofre; mandou que trouxessem o culpado e prendeu-o — o meirinho, na verdade, encontrou a propriedade perdida nos pés do avarento. Muito custou a este livrar-se das garras da lei; o tribunal sabia, tão bem como todos, quão rico era. Por fim, o mercador recebeu de volta suas queridas babuchas velhas.

Tristonho, pesaroso, Abu Kasem voltou para casa e, num ímpeto de raiva, atirou seus tesouros pela janela. Caíram chapinhando no Tigre, que corria barrento atrás da casa. Poucos dias depois um grupo de pescadores do rio acreditou ter fisgado um peixe especialmente grande, mas quando puxaram a rede que mais haveriam de ver senão as famosas babuchas do avarento? As tachinhas (uma das ideias de Abu Kasem para economizar) haviam feito vários rasgões na rede, e os homens, é claro, ficaram furiosos. Arremessaram aqueles objetos enlameados e ensopados por uma janela aberta. Por acaso, era a casa de Abu Kasem. Sulcando os ares, suas possessões restituídas aterraram com estrondo sobre a mesa onde ele enfileirara os preciosos frasquinhos de cristal comprados tão barato — agora ainda mais preciosos porque os enchera com a valiosa essência de rosas, preparando-os para vendê-los. A deslumbrante e perfumada magnificência esparramou-se pelo chão e ali se transformou numa gotejante massa de cacos de vidro, misturando-se à lama.

O narrador que nos contou a história não conseguiu descrever a dimensão do desespero do avarento. “Malditas babuchas!”, vociferou Abu Kasem (isso foi tudo que nos contaram). “Não ME dareis mais prejuízos!”, disse. Apanhando uma pá, rumou, rápido e silencioso, para seu jardim, onde abriu uma cova para enterrar os trastes. Acontece que seu vizinho estava espiando — muito interessado, é claro, em tudo o que ocorria na casa do milionário e, como é tão frequente em se tratando de vizinhos, sem ter nenhuma razão especial para querer-lhe bem. “O velho miserável tem bastante empregados e apesar disso vem cá fora cavar um buraco com suas próprias mãos”, pensou consigo mesmo. “Ele deve ter um tesouro enterrado ali. Claro que é isso! E tão óbvio!” O vizinho disparou a correr até o palácio do governador e denunciou Abu Kasem, pois qualquer coisa que um caçador de tesouros descubra pertence por lei ao califa, já que a terra e tudo o que oculta é de propriedade do soberano dos crentes. Portanto, Abu Kasem foi chamado à presença do governador e a história de que cavara a terra apenas para enterrar um velho par de babuchas provocou gargalhadas gerais. Que outro culpado jamais se acusara tão claramente? Quanto mais o notório sovina a repetia mais incrível sua história se tornava e mais culpado ele parecia. Ao pronunciar a sentença o governador levou em conta o tesouro enterrado e, atônito, Abu Kasem escutou o montante de sua multa.

Estava desesperado. Amaldiçoou as abomináveis babuchas de todas as maneiras. Mas como livrar-se delas? O único jeito seria levá-las para fora da cidade. Fazendo uma longa viagem até o campo atirou-as em um tanque distante. Quando desapareceram nas águas espelhadas Abu Kasem respirou profundamente: livrara-se delas, por fim! Mas certamente o diabo andava por ali; o lago era o reservatório de água da cidade e as babuchas foram arrastadas pelo redemoinho que se formava na boca do cano, obstruindo-o. Quando os guardas vieram fazer o reparo, encontraram as babuchas, reconheceram-nas — e quem não? — e denunciaram Abu Kasem ao governador por poluir o reservatório. E lá foi ele de novo para trás das grades. Puniram-no com uma multa bem maior que a última. Que é que ele poderia fazer? Pagou. Recebendo de volta suas queridas babuchas velhas, pois o coletor de impostos não queria ficar com nada que não lhe pertencesse.

Já haviam causado dano bastante. Desta vez ele lhes pagaria na mesma moeda, para que não lhe pregassem mais peças. Decidiu queimá-las. Como ainda estivessem úmidas, colocou-as na varanda para secar. Do balcão da casa vizinha um cachorro viu aquelas coisas de aspecto engraçado e se interessou. Pulou, agarrou uma babucha e, ao brincar com ela, deixou-a cair na rua. O malfadado traste rodopiou no ar a uma altura considerável e aterrissou na cabeça de uma mulher que passava. Ela estava grávida. O choque repentino e a força do golpe provocaram-lhe um aborto. Seu marido correu ao juiz e exigiu do rico e velho avarento uma indenização por perdas e danos. Abu Kasem, quase fora de si, foi obrigado a pagar.

Antes que, alquebrado, deixasse a corte para cambalear de volta à sua casa, levantou solenemente as infelizes babuchas e protestou, com tal gravidade que fez o juiz rir-se descontroladamente: “Senhor, estas babuchas são a causa fatal de todos os meus sofrimentos. Estas coisas amaldiçoadas fizeram de mim um mendigo. Dignai-vos ordenar que eu jamais volte a ser responsabilizado pelos males que certamente continuarão a fazer cair sobre minha cabeça”. O narrador oriental termina com a seguinte lição moral: o cádi não pôde rejeitar o apelo e Abu Kasem aprendeu, pagando enorme preço por isso, o mal que pode ocorrer a alguém que não troque suas babuchas com a frequência devida.

Folclore, Heinrich Zimmer