Balsekar (RBET:Intro) – Básico do ensinamento de Nisargadatta

O que-se-é, como númeno, é ser intemporal, infinito, imperceptível. O que se parece ser como fenômeno é objeto separado temporal, finito, sensorialmente perceptível. Verdadeiramente, somos invenções ilusórias na conscientidade.


(1) Númeno — pura subjetividade — não tem conscientidade de sua existência. Tal conscientidade de sua existência só ocorre com o surgimento da conscientidade – eu sou. Este surgimento espontâneo da conscientidade (porque essa é a sua natureza, como disse Maharaj), traz a sensação de presença, de existência. Simultaneamente, causa o surgimento da manifestação fenomênica na conscientidade, juntamente com um senso de dualidade. A Totalidade se divide na dualidade de um (pseudo) sujeito e objeto observado — cada objeto fenomênico assume a subjetividade como um “eu” em relação a todos os outros objetos como “outros”. A objetivação dessa dualidade requer a criação dos conceitos gêmeos de “espaço” e “tempo”: “espaço” no qual o volume dos objetos pode ser estendido, e “tempo” no qual as imagens fenomênicas estendidas no espaço podem ser percebidas, conhecidas e medidas em termos da duração da existência.

(2) Os seres humanos e todos os outros seres sencientes são parte integrante da manifestação fenomênica total como qualquer outro fenômeno. Eles surgem com o surgimento do universo fenomênico. Como fenômenos objetivos, não há diferença aparente entre objetos animados e inanimados. Mas subjetivamente, é a senciência que é responsável por permitir que os seres sencientes percebam. A senciência, como tal, é um aspecto da conscientidade no qual a manifestação ocorre, mas não tem nada a ver com o surgimento da manifestação. Assim, embora a senciência permita que os seres humanos percebam outros objetos, e o intelecto os capacite a discriminar, eles não são diferentes de todos os outros fenômenos.

(3) A escravidão conceitual surge apenas porque cada fenômeno humano se assume como uma entidade independente. Como tal, ele se considera sujeito aos vínculos do espaço-tempo como algo tangível e estranho à sua própria existência.

(4) A numenalidade e a fenomenalidade são idênticas no sentido de que a noumenalidade é imanente à fenomenalidade. A numenalidade deve, ao mesmo tempo, transcender a fenomenalidade porque a numenalidade é tudo o que existe. A fenomenalidade é apenas o aspecto objetivo da numenalidade.

É a identificação da numenalidade com cada fenômeno separado, produzindo assim um pseudo-sujeito a partir do que é meramente o elemento operacional em um objeto fenomênico que produz o fantasma de um indivíduo autônomo, o ego, que se considera em sujeição conceitual.

O funcionamento fenomênico como tal é bastante impessoal, e a entidade ilusória é totalmente desnecessária nele, sendo seu lugar apenas o de um aparato ou mecanismo. O funcionamento impessoal comporta a experiência impessoal tanto da dor quanto do prazer, e é somente quando esta experiência é interpretada pelo pseudo-sujeito como o experimentador que vivencia a experiência na duração, que a experiência perde seu elemento intemporal e impessoal de funcionamento e assume a dualidade da objetivação como sujeito/objeto.

(5) O que-se-é, como númeno, é ser intemporal, infinito, imperceptível. O que se parece ser como fenômeno é objeto separado temporal, finito, sensorialmente perceptível. Verdadeiramente, somos invenções ilusórias na conscientidade. O fato de nós, como entidades separadas e ilusórias, esperarmos absurdamente poder nos transformar em seres iluminados, mostra a extensão do condicionamento a que fomos submetidos. Como pode um fenômeno, uma mera aparição, aperfeiçoar-se? Somente a desidentificação com a suposta entidade pode provocar a transformação.

(6) Parece que o mecanismo da vida é baseado na crença de que tudo o que acontece na vida é o resultado de atos de volição dos objetos fenomênicos envolvidos, os seres sencientes. Mas isto seria uma crença incorreta porque pode ser visto claramente que os seres humanos reagem a um estímulo externo em vez de agir voluntariamente. Sua vida é principalmente uma sequência de reflexos que quase não deixa espaço para o que pode ser considerado como atos de vontade ou volição. Seu modo de vida é muito condicionado pelo instinto, hábito, propaganda e a última “moda”. Mais fundamentalmente, o fato é que a volição nada mais é do que uma inferência ilusória, uma mera demonstração, um gesto fútil de um “eu-conceito” energizado. Além do mecanismo psicossomático, simplesmente não há entidade para exercer a volição. Tudo o que existe é o funcionamento impessoal e a inexorável cadeia de causação.

(7) Na ausência de uma entidade (redundante na ausência de volição), quem é aí para exercer a volição ilusória e quem é aí para experienciar os resultados dela? Quem existe para ser sujeitado e quem existe para ser libertado?

A compreensão mais profunda possível destes fundamentos do Ensinamento leva a uma vida espontânea e “não volitiva”. Esta é a experiência do Ensinamento, a experiência que é o viver numênico. Esta experiência logo leva ao imenso despertar de que esta vida é um grande sonho. Então somos envolvidos por um sentimento avassalador de unidade auto-anulada. O que poderia restar depois, senão o testemunho não volitivo de tudo o que acontece durante o restante de nosso período de tempo?

Esse testemunho não volitivo – testemunhar tudo o que acontece sem julgar – surge junto com uma relação não objetiva tanto consigo mesmo quanto com os outros. Uma relação não-objetiva consigo mesmo ocorre quando não há pensamento de si mesmo como objeto de qualquer tipo, físico ou psíquico. Saber o que se é sem a menor necessidade de qualquer explicação de ninguém, ter a mais profunda convicção possível de que se é totalmente desprovido de qualquer “traço de objetividade”, é experimentar o Ensinamento. A total falta de qualquer qualidade objetiva só pode significar a ausência do próprio conceito da presença e da ausência do perceptível e do concebível. Uma relação não objetiva consigo mesmo resulta naturalmente em uma relação não objetiva com os outros, o que significa deixar de considerar todos os fenômenos, sensíveis ou insensíveis, como objetos de si mesmo. Há então uma apercepção instantânea de que tanto o suposto sujeito (si mesmo) quanto os supostos objetos (os outros) existem apenas como aparições. O resultado, em outras palavras, é a eliminação do mal-entendido conhecido como “ignorância”, o que significa de fato a percepção de nossa verdadeira natureza.

Falando como “eu” (númeno), todos nós podemos — cada um de nós — dizer ao eu fenomênico: “Aquiete-se e saiba que sou Deus”. É somente quando o eu fenomênico é ausente que o “eu” numênico pode ser presente.

 

Ramesh Balsekar