Baret (EBDV) – Xivaísmo de Caxemira

Antoinio Carneiro

Podeis nos falar da tradição de Caxemira [Khasmir]?

Tudo o que se poderia dizer sobre esta tradição lhe seria um insulto. Ela é o reflexo direto da não-direção, o pressentimento profundo de nada ter à realizar, que tudo já se realizou. Toda expressão que se singulariza, que afirma, que transmite informações, que ensina ou pede uma insignificante mudança é simplesmente um reservatório de dados; isso não faz parte do que se chama no Oriente um olhar tradicional.

A Tradição se exprime através de uma forma codificada à qual não é necessário se ligar. Nada há senão uma escuta, uma escuta que nada sabe, que nada espera. Não tem senão um olhar inocente, um olhar que não se deixa adoecer. Assim como um insignificante destaque sobre a mudança de comportamento ou a maneira de pensar não faria também senão estimular o afastamento, uma tradição que solicitasse a um ser humano de fazer qualquer coisa acentuaria o que não é ser humano.

Uma verdadeira tradição acentua o essencial, o que é fundamental para o ser, o que é constante. O que é que em nós é constante? O que é que, em nós, é independente das características psicológicas e fisiológicas?

A Tradição não pode ser nomeada. Quando vós ides escutar um adágio de Mozart, aquele que escuta não ouve verdadeiramente os instrumentos, ele sente o silêncio. Na admiração de um quadro de dança, o artista está totalmente disponível ao movimento; é a imobilidade que faz verdadeiramente sentir a beleza. Da mesma maneira, do exterior, poder-se-ia falar de uma formulação cristã, muçulmana, taoísta ou xivaísta. Mas aquele que respira esta tradição não se sente ligado nisso, não se sente fixado por sua coloração. Não se deveria nem sequer saber de qual tradição se participa. Nenhuma acentuação é dada à forma. Um sufi que se diz sufi não é um verdadeiro sufi.

Na busca de uma insignificante secularização, procura-se um « grande mestre », uma antiquíssima tradição ou grandes textos, etc.; tudo isso faz parte do mundo profano. A verdadeira tradição acentua a beleza, a alegria. Esta beleza e esta alegria se exprimem pela voz, pela música, pela dança. No Yoga, tudo é movimento. Para compreender o movimento, é preciso igualmente pressentir o não-movimento. A alegria, é a grande harmonista de todos os ritmos do corpo, de todos os sopros.

No Oriente, a sensibilização aos sopros e suas expressões na vida são muito destacadas. Do ponto de vista da função social, pode-se certamente se tornar especialista de uma tradição, dizer à qual época algumas pessoas foram abaladas por sua formulação. Pode-se até escrever sobre esta tradição, publicar a biografia das pessoas que a exprimiram. Essas atividades são legítimas como todas as atividades humanas, mas isso não concerne à tradição. Os livros de música não concernem ao pressentimento da alegria ressentida à um concerto. As publicações sobre Mozart são justificadas mas os livros sobre Mozart não fazem sentir a música. Os livros sobre as tradições não fazem sentir o silêncio.

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