Eu poderia citar outros exemplos, mas terminarei essa visão retrospectiva com um breve comentário sobre a nova maneira como os europeus de hoje encaram a bruxaria. Há uns oitenta anos atrás, sábios eminentes como Joseph Hansen e Henry Charles Lea consideravam como definitivas as conclusões quanto às origens da bruxaria ocidental: foi a Inquisição, não as próprias bruxas, que inventou a bruxaria. Em outras palavras, todas as histórias de assembleias de bruxas, práticas satanistas, orgias e crimes eram consideradas como criações imaginárias de pessoas neuróticas ou declarações obtidas dos acusados nos tribunais, especialmente através de torturas. Realmente, esse foi um expediente usado na caça às bruxas nos séculos 15, 16 e 17. Contudo, sabemos que a bruxaria não foi inventada pela inquisição. À Inquisição coube simplesmente associar a bruxaria com as heresias e, consequentemente, procurar exterminar as chamadas bruxas com o mesmo rigor com que se perseguiam os hereges. Esse fato é evidente a qualquer historiador de religiões familiarizado com fenômenos culturais não europeus, particularmente indo-tibetanos, onde muitos traços semelhantes existem.
Contudo, permanecia sem solução o problema da origem da bruxaria ocidental. Em 1921, Margaret Murray, uma ex-egiptóloga, publicou The Witch-Cult in Western Europe, um livro que causou grande repercussão na época e é, até hoje em dia, de grande popularidade, principalmente entre os jovens. A Dra. Murray defendia a tese de que o fenômeno da bruxaria, conforme o chamavam os autores eclesiásticos, nada mais era do que uma religião primitiva, pré-cristã, de fertilidade. Em livros subsequentes, a autora aprofundou sua pesquisa, tentando provar a sobrevivência do culto pagão mesmo entre membros da família real inglesa e na mais alta hierarquia eclesiástica. Compreende-se facilmente a reação de critica por parte de arqueólogos, historiadores e estudiosos do folclore. Na realidade, quase tudo na teoria de Murray era falso, exceto um pressuposto muito importante: realmente existiu um culto pré-cristão de fertilidade e, durante a Idade Média, os remanescentes desse culto foram taxados de bruxaria. Não se tratava de uma ideia nova, mas coube às obras de Murray divulgá-la. Devo esclarecer logo que não são convincentes nem os documentos escolhidos por ela como ilustração de sua hipótese nem seu método de interpretação. Contudo, pesquisas recentes parecem confirmar pelo menos alguns aspectos de sua tese. O historiador italiano Carlo Ginsburg provou que um culto de fertilidade, de grande aceitação pelo povo, era na província de Friul, nos séculos dezesseis e dezessete, e esse culto modificou-se, sob pressão da Inquisição, terminando por assemelhar-se à concepção tradicional de bruxaria. Além disso, pesquisas recentes sobre a cultura popular romena revelaram fenômenos pagãos remanescentes que demonstram a nítida existência de um culto de fertilidade que pode ser caracterizado como “magia branca”, comparável a alguns aspectos da bruxaria medieval do Ocidente. [Eliade]
Há uns oitenta anos atrás, o problema das origens da bruxaria parecia definitivamente solucionado. O erudito arquivista alemão Joseph Hansen editou seu Zauherwahn, Inquisition und Hexenprozess e começou a publicação dos anais dos julgamentos, e o não menos culto historiador americano Henry Charles Lea publicou sua History of the Inquisition in the Middle Ages, enquanto reunia material para o que seria postumamente publicado sob o nome de Materials towards a History of Witchcraft. Segundo Hansen; “a perseguição epidêmica dos mágicos e bruxas é um grande produto da tecnologia medieval, da organização eclesiástica e dos julgamentos mágicos levados a efeito pelo Papado e pela Inquisição. Esse, sob a influência da demonologia escolástica, eram realizados como julgamentos de heresias. Também Lea chegou à conclusão de que foi a Inquisição, e não as bruxas, que inventou o conceito de bruxaria. Dentro desse conceito, aquele pesquisador datou as atividades de bruxaria como tendo se iniciado nos meados do século XIV.
Essa opinião com referência às origens da bruxaria refletia o liberalismo, o raciocínio e o anticlericalismo da época e se apoiava num grande número de documentos; ela foi aceita, até o início da década de 20, como a única explicação convincente da ascensão e queda do fenômeno na Europa. Naturalmente, havia opiniões contrárias, como a de Montague Summers, um dos pesquisadores mais recentes, que não tinha dúvida quanto à intervenção real do demônio nas atividades das bruxas. Em consequência, ele não questionava a realidade de quaisquer atividades que se supunham ser praticadas por bruxas, como fugas para reuniões secretas, adoração a Satã, infanticídio, canibalismo, orgias e outras. Essa perspectiva ultraconservadora era também defendida não somente por alguns apologistas católicos, mas por ocultistas e alguns escritores; era também bastante popular entre o sananteurs da Missa Negra e de outros entretenimentos luciferianos. Em suma, a interpretação liberal racionalista negava a existência das bruxas por causa dos elementos sobrenaturais implícitos na bruxaria, enquanto que a interpretação ultraconservadora acreditava nas acusações da Inquisição, porque seus defensores tinham como certa a realidade do Demônio.
Não pretendo resumir aqui os resultados das pesquisas desenvolvidas nos últimos cinquenta anos. Basta dizer que, à medida que foram realizadas as pesquisas, o fenômeno pareceu mais complexo e, consequentemente, mais difícil de se explicar por um simples fator. Gradualmente evidenciou-se que a bruxaria não pode ser satisfatoriamente compreendida sem a ajuda de outras disciplinas, tais como o Folclore, a Etnologia, a Sociologia, a Psicologia e a História das Religiões. Os dados à disposição dos historiadores de religiões são especialmente úteis na localização da bruxaria dentro de seu próprio contexto. Por exemplo, uma leitura menos rápida de documentos hindus e tibetanos convencerá um leitor não preconceituoso de que a bruxaria europeia não pode ser produto de perseguição religiosa ou política ou ser uma seita demoníaca dedicada a Satã e à promoção do mal. Na realidade, todos os traços característicos das bruxas europeias, com exceção do envolvimento com Satã e o Sabá, são reivindicados pelos iogues e mágicos indo-tibetanos. Assim, da mesma forma que as bruxas, também diz-se que eles voam pelos ares, têm capacidade de se tornar invisíveis, matar à distância, dominar demônios e fantasmas e desenvolver outras atividades afins. Além disso, alguns desses excêntricos sectários hindus se vangloriam de quebrar todos os tabus religiosos e normas sociais: dizem que praticam sacrifícios humanos, canibalismo e todos os tipos de orgias, inclusive relações incestuosas; dizem que comem excrementos e animais nojentos e que devoram cadáveres humanos? Em outras palavras, eles orgulhosamente afirmam praticar todos os crimes e cerimônias horríveis citadas ad nauseam nos julgamentos das bruxas europeias.
Infelizmente, as poucas tentativas de pesquisa do fenômeno da bruxaria europeia sob o prisma da História das Religiões têm sido irremediavelmente inadequadas. Uma dessas tentativas alcançou um sucesso inesperado e se tornou popular, especialmente entre os diletantes. Refiro-me à obra de Margaret Murray, The Witch-Cult in Western Europe, publicado em 1921 pela Oxford University Press. A teoria da Dra. Murray exerceu grande influência por mais de meio século, e seu artigo sobre bruxaria na Encyclopaedia Britannica foi, até recentemente, reimpresso em muitas edições sucessivas. Desde o começo, alguns estudiosos da matéria mostraram seus muitos erros factuais e falhas metodológicas Contudo, o impacto de The Witch-Cult in Western Europe foi tamanho que, ainda em 1962, um historiador inglês, Elliot Rose, dedicou quase um livro inteiro, A Razor for a Goat, à análise detalhada e à crítica devastadora, embora humorística, da teoria de Murray. Rose resumiu, de maneira inteligente, esta teoria, segundo a qual a bruxa era essencialmente um membro de uma organização de culto que não se opunha ao Cristianismo, mas era uma manifestação de uma religião totalmente independente e, na realidade, mais antiga do que o Cristianismo: o paganismo da Europa ocidental pré-cristã, sobrevivente por séculos após uma conversão nominal. Seu objeto de culto era um deus de face dupla e de chifres, identificável como Janus ou Dianus (amplamente descrito nos primeiros capítulos de The Golden Bough) e como o deus celta Cemunnos. Os membros da Inquisição, em sua ignorância e fanatismo, confundiram essa divindade com o Satanás da Igreja, mas as prerrogativas desse deus eram quase tão respeitáveis como as de Jeová e tinham prioridade local. Na realidade, esse foi o culto realmente popular na Inglaterra e em vários países vizinhos durante toda a Idade Média. O Cristianismo não passava de um verniz adotado por motivos diplomáticos, ao qual os governantes fingiam uma submissão aparente. Mesmo os governantes que agiam dessa maneira não conseguiam suprimir o culto às bruxas (ou, como a Dra. Murray preferiu chamar, o dianismo). A razão disso estava em que suas práticas, longe de serem malignas ou anti-sociais, eram geralmente consideradas necessárias ao bem-estar da coletividade,como haviam sido na época do paganismo declarado; e, por isso, elas eram secretamente promovidas, até na época da Reforma, por pessoas que ocupavam os mais elevados cargos do Estado, exatamente aquelas que publicamente dedicavam-se à execração do deus comígero e de seus feitos. Diz-se que o culto, aparentemente monoteísta, tinha uma organização complexa, baseada numa assembleia de treze membros, pertencentes a todas as classes sociais, desde reis e seus ministros e, supunha-se também, prelados cristãos.
Conforme eu já disse, historiadores já demonstraram os erres inumeráveis e terríveis que desabonam a reconstituição do fenômeno da bruxaria europeia segundo Murray. O historiador de religiões pode apenas acrescentar que foi infeliz o uso que ele fez do material comparativo e, em geral, dos métodos de Religionswissenschaft. Contudo, pelo menos um de seus críticos, J. B. Russell, reconhece o mérito da obra de Murray, no que diz respeito ao fato de enfatizar a persistência de práticas e crenças folclóricas pagãs, séculos após a implantação do Cristianismo. Com efeito, muitos estudiosos, desde Jakob Grimm a Otto Höfler, têm salientado repetidas vezes a sobrevivência de crenças e rituais religiosos pré-cristãos, especialmente na Europa ocidental e central. Contudo, o ponto básico da tese de Murray era o de que os inquisidores haviam interpretado mal e perversamente um culto arcaico de fertilidade como sendo de adoração a Satã. Sabe-se, hoje em dia, que, a partir do século VIII, a feitiçaria e a superstição popular foram progressivamente equacionadas à bruxaria e a bruxaria à heresia. Mas é difícil de compreender como o culto de fertilidade de Murray pôde se desenvolver até tomar-se uma sociedade secreta de fins exclusivamente destrutivos; porque, de fato, as bruxas, medievais eram conhecidas como capazes de causar secas, chuva de pedra, epidemias, esterilidade e, em último caso,, morte. E verdade que, invariavelmente, as bruxas, assim como os hereges, eram acusadas de práticas orgiásticas; mas, de acordo com suas próprias declarações, nem sempre obtidas por meio de torturas, as crianças nascidas dessas orgias eram sacrificadas e comidas em reuniões secretas. Em outras palavras, as orgias das bruxas não podiam verdadeiramente ser classificadas entre os cultos de fertilidade orgiásticos. [Eliade]