Ananda Coomaraswamy — Pensamento Vivo de Buda
Isto nos leva a considerar a doutrina da “pureza do Daimon” (yakkassa suddhi). Não nos importemos com o fato que os gênios possam ser múltiplos, da mesma maneira que outras tradições conhecem uma multiplicidade de outros espíritos além do Espírito; admitiremos que o Daimon por excelência (sânscrito yaksha) fora, a princípio, e era ainda nos Upanixades, Brahma: este Brahma que é ao mesmo tempo transcendente, e, como o “Eu do eu”, imanente. Os próprios Sakyas tinham sido os adoradores do Yakkha Sakyavardhana, que mui provavelmente não passa da natureza “sempre fecunda”. No budismo, Buda tão frequentemente qualificado de “Tornado Brahma” (Brahma-bhuta), é também chamado um Yakkha, um Daimon, do qual falamos de passagem sobre a “pureza”. Buda é “não-contaminado” (anupalitto), totalmente “expirado”, chegado ao termo (attha-gata, como o predizia o nome que lhe deram, Siddhartha), puro (suddho), imutável (anejo), sem desejo ([wiki]Suttanipata[/wiki] 478; cf. [wiki]Majjhima_Nikaya[/wiki] I. 386, buddhassa… ahuneyycissa yakhassa); “Tal é a pureza do Daimon, ele que é o Descobridor da Verdade tem direito à oferenda”; ele é o Daimon ahuneyya “a quem se deve apresentar a oferenda do sacrifício ([wiki]Samyutta_Nikaya[/wiki] I, 32; [wiki]Majjhima_Nikaya[/wiki] I, 386; [wiki]Suttanipata[/wiki] 478). Enquanto que todas as existências se mantêm pelo “alimento” (físico ou mental) ([wiki]Digha_Nikaya[/wiki] m, 211) e com ele se deliciam, pergunta-se “qual é então o nome deste Daimon que não encontra prazer no alimento?” ([wiki]Samyutta_Nikaya[/wiki] I, 32; cf. [wiki]Suttanipata[/wiki] 508). Isto lembra exatamente a pergunta: “Não ME dirás quem é?” e a resposta de Sócrates: “Se te dissesse seu nome, tu não o conhecerias”; aliás, na tradição hindu e em muitas outras “Quem?”, é o nome mais apropriado do Deus que é o “Eu de todas as existências”, que não veio de parte alguma, que jamais se tornou alguém. Este “Eu de todos os seres” é o Sol; “não o sol que todos podem ver, mas o Sol que poucos conhecem pelo Espírito” (arepassa, isto é, anupalitto). É essa uma das numerosas razões para assimilar Buda (brahmabhuta, também chamado “o Olho que está no inundo” e “cujo nome é verdade”) a esta “Luz das luzes”, este “Sol dos homens”.
O que nos ocupa no momento é a expressão “não contaminado”. Explicitamente ou implicitamente, tanto nos textos búdicos ou pré-búdicos (onde deparamos ainda com o “Sol” “loto único do céu”) a alusão metafórica se refere à pureza do loto que “não é molhado pela água” acima da qual flutua. Buda, igualmente “não é maculado pelos contatos humanos” (((wp-en:Suttanipata|Suttanipata) 456; cf. 5″. IV, 180) ; não maculado pelo mundo ([wiki]Anguttara_Nikaya[/wiki] III, 347) nem por todas as coisas do inundo ([wiki]Anguttara_Nikaya[/wiki] IV, 71). O que fica assim explícito, projeta uma luz sobre a natureza do fim que Buda e outros Homens Perfeitos procuraram e atingiram, Imagina-se demasiadamente que a noção de um fim “além do bem e do mal” é de origem moderna. Ao contrário, ela se apresenta não somente nos textos hindus, mas também islâmicos e cristãos, faz parte da diferenciação normal entre a vida ativa e a contemplativa: a virtude é essencial para a primeira, dispositiva somente para a segunda, cuja perfeição é precisamente o fim último do homem, isto é, a contemplação beatífica da Verdade. É uma ideia que é repetida muitas vezes nos textos budistas: aquilo de que o Homem Perfeito não é contaminado, não é somente o mal ou o vício, é também o bem e a virtude. Muitos textos o dizem em termos próprios: “não contaminado, seja pela virtude, seja pelo vício, o eu rejeitado, pois nenhuma ação é doravante necessária aqui” ([wiki]Suttanipata[/wiki] 790); “aquele que fugiu dos laços seja da virtude, seja do vício, que é sem mágoas, ao qual nenhuma poeira adere, aquele que é puro, é a ele que chamo um verdadeiro brâmane” ([wiki]Dhammapada[/wiki] 412), isto é, um Arahant. Ainda mais notável é a parábola da balsa: “Abandonai o bem e.com mais razão ainda, o mal; aquele que atingiu a outra margem não precisa de balsas” ([wiki]Majjhima_Nikaya[/wiki] I, 135). Temos uma analogia perfeita na frase de Santo Agostinho: “Que ele não mais se sirva da Lei como meio de conseguir quando conseguiu” (De spir. et lit. 16) e aquela de Mestre Eckhart: “Atingida a outra não preciso mais de nau”; o mesmo autor diz também: “Olhai a alma divorciada do que quer que seja… não deixando mais traço nem de vício nem de virtude”.
“A “pureza” não se atinge pela fé, nem a audição, nem o conhecimento, nem a ética, nem a ação: mas ela não se atinge também sem elas ([wiki]Suttanipata[/wiki] 839); em outros termos, a formação moral é absolutamente indispensável, mas em si ela não traz a perfeição. Há regras de conduta estabelecidas para os chefes de famílias e outras para os religiosos: estas últimas, bem entendido, são mais severas, mas elas nada têm de excessivo: as torturas do corpo são severamente condenadas. Os religiosos que tinham cometido uma falta (é necessário compreender bem que alguns quiseram entrar na Ordem por razões indignas) podiam ser citados e censurados publicamente diante da assembleia dos monges, e expulsos no caso de faltas graves. Ao contrário, os monges mendicantes não estavam então’, mais do que hoje, aliás, ligados por laços inquebrantáveis; eram livres de regressar à vida familiar quando o quisessem; no máximo eles se expunham a que se lhes censurassem sua fraqueza.