Canteins Milagre da Multiplicação

JEAN CANTEINS — A PAIXÃO DE DANTE ALIGHIERI

VIDE: PÃO; MILAGRE DA MULTIPLICAÇÃO

Talice de Ricaldone, em seu Comentário de 1474, não se contentou de associar a Dante o epíteto theologus, fez ainda melhor descobrindo a palavra theos na ortografia latina do nome do Poeta! Dantes proprium nomen est quasi Dans Theos, id est Deum, sive cognitionem Dei: «O nome próprio Dantes é (a ler) Dans Theos, quer dizer “Quem dá Deus” ou melhor o conhecimento de Deus». Não se condenará um homem do século XV de ter visto no prenome de seu Poeta venerado o amalgama de uma forma verbal latina: — o particípio presente dare, e de um substantivo grego: theos (no nominativo por acréscimo e não no acusativo, como convém e como nosso exegeta não deixa de o fazer na tradução Deum), tanto a figura é bela em sua artificialidade.

Sem dúvida a ideia da aproximação entre Dante e o adjetivo verbal dans-dantis é tomada a Bocágio que, um século antes, levantou esta homonímia para dar matéria à tradição que fazia descender Dante da família romana dos Frangi[a]pane: «Que partem o pão» (para o dar aos pobres). Se o rumor público parece ter confirmado a reputação de caridade dos Frangipane, seu parentesco com os Alighieri resta a demonstrar: se verá o Poeta mencionar um certo Eliseo (Paraíso XV,136) mas nada indica que se tratasse de um Frangipane, como os biógrafos de Dante supuseram conforme ao que se pretendia em sua família após sua morte. Como quer que seja, Dante nem confirmou nem infirmou uma tal filiação que se deve compreender provavelmente não no sentido estreito de ligações do sangue mas de maneira ideal, como Bocágio o sugere e como Dante ele mesmo quer que se entenda quando convida a sua mesa «o pequeno número» (pochi) a comer o «pão dos Anjos».

A alusão é clara ao final do livro primeiro do Convivio onde Dante, retomando um episódio da multiplicação dos pães de Jo 6,2-14, não hesita a reivindicar para ele mesmo a prerrogativa crística que permite a uma «grande multidão» comer até se saciar e, uma vez saciados por cinco pães de cevada milagrosamente multiplicados, de deixar ainda ao final da refeição uma dúzia de cestas! Dante promete por sua vez como «alimento de vida» (vivanda = «carne» no sentido etimológico) uma outra espécie de pão de cevada (pane orzato) destinado a saciar igualmente milhares de pessoas não por uma consumação física mas pela leitura; em outros termos, Dante, imitando Jesus, se propõe saciar a multidão em lhe dando a ler seus escritos. Pretende mesmo, com a garantia do Cristo na montanha, que uma vez esta saciada ainda restará para ele cestos cheios.

É surpreendente que os comentadores não se interessassem bastante à expressão «pão dos Anjos» e se contentassem de aí ver um designação da Ciência Sagrada. A evidente vontade de parafrasear o episódio crítico e de dele explorar ao mesmo tempo o efeito milagroso e o resultado paradoxal mostra em Dante uma intenção e uma pretensão de uma outra natureza que sapiencial: assim como o escrito poético é para o Poeta o que o pão de cevada é para Jesus, assim também o pão dos Anjos é para Dante o que a Eucaristia é para o Cristo. Dante não pode alegar a transubstanciação efetiva de seu corpo e de seu sangue, não pode se aplicar e se apropriar de o mistério da Eucaristia mas usa da analogia para dela sugerir um equivalente transposto a seu estado.

Convém insistir aqui. A significação eucarística da multiplicação dos pães é evidente. O caráter prefigurativo do mistério aí se encontra corroborado pela sequência que lhe é dada em Jo 6,30-59 onde Jesus revela à multidão a significação do banquete: Muito esquematicamente:
-*33. o pão de Deus é aquele que desce do Céu e que dá a vida ao mundo
-*35. Jesus diz: «Sou o pão de vida»
-*41. Os judeus murmuravam contra (Jesus) porque tinha dito: «Sou o pão que desce do Céu».



Jean Canteins