Ananda Coomaraswamy — O Pensamento Vivo de Buda
A VIDA DE BUDA (cont.)
Nos recessos das florestas o príncipe despojou-se de seu turbante real e de sua longa cabeleira, que não convinham a um religioso-mendicante, e mandou de volta seu cocheiro. Encontrou-se com eremitas brâmanes e, sob a direção deles, dedicou-se à vida contemplativa. Depois ele os deixou para se consagrar sozinho ao “Grande Esforço”; ao mesmo tempo um grupo de cinco monges mendicantes tornaram-se seus discípulos e entraram a seu serviço na ideia de que se tornaria vim Buda. Nesse intuito ele praticou mortificações muito mais severas e pouco faltou para que se deixasse morrer de fome. Mas compreendendo que o enfraquecimento do corpo e das faculdades espirituais não o conduziriam ao Despertar (bodhi) pelo qual renunciara à vida mundana, retomou sua tigela de esmolas e foi mendigar alimento nas aldeias e cidades como os outros religiosos: vendo isto, seus cinco discípulos o abandonaram. Mas chegara a hora do Despertar e pelos sonhos que tivera o Bodhisatta pôde concluir: “Hoje mesmo me tornarei um Buda”. Comeu de uma comida em que os deuses tinham misturado sua ambrosia, e descansou durante o dia. Ao anoitecer aproximou-se da árvore de Bodhi, e ali, no centro da terra, o rosto voltado para o oriente, sentou-se no mesmo lugar em que todos os Budas anteriores se sentaram no momento de sua Iluminação; imóvel, resolveu não se mover antes de ter realizado seu desígnio.
Então Mara_(demon) (a Morte), o ancião Ahi-Vrtra-Namuci dos Vedas, “o de firmeza inabalável”, vencido outrora por Agni-Brhaspati e por Indra, mas jamais morto, observando que “o Bodhisatta quer se libertar do meu poder” e resolvido a não o deixar escapar, dirigiu suas hostes contra ele. Os deuses, atemorizados, fugiram; o Bodhisatta ficou só, sem outra defesa do corpo que a de suas virtudes. O assalto de Mara_(demon), pelas armas do trovão e do relâmpago, das trevas, da água e do fogo, e de todas as tentações oferecidas pelas três beldades que são as filhas de Mara_(demon), deixaram o Bodhisatta impassível e impávido. Mara_(demon), não podendo reconquistar o trono que pretendia, foi forçado a retirar-se. Os deuses voltaram e celebraram a vitória do príncipe; a noite desceu nesse ínterim.
Penetrando em planos de contemplação cada vez mais profundos, o Bodhisatta obteve sucessivamente o conhecimento de suas vidas anteriores, a Sagacidade divina, a compreensão das origens pelas causas, e finalmente, pela madrugada, a plena Iluminação, o Grande Despertar (maha-sambodhi) que buscava. Já não é mais um Bodhisatta; tornou-se um Buda, um “Desperto”. Um Buda não mais participa de uma categoria; não pode ser comparado com qualquer outro ser; não é mais chamado por um nome; não é mais uma pessoa, é um ser que seria vão querer conhecer pelo nome próprio, e ao qual só poderiam convir epítetos tais como Arahant (“Digno”), Tathagata (“o que veio autenticamente”), Bhagava (“Dispensador”) Mahapurisa (“Grande Cidadão), Saccanama (“aquele cujo nome é Verdade”), Anoma (“Insondável”), dos quais nenhum designa um indivíduo. Os sinônimos “O Que Se Tornou Dhamma”, e “O que Se Tornou Brahma” devem ser observados particularmente, pois Buda se identifica expressamente com a lei Eterna (dhamma) que personifica; e a expressão “O que Se Tornou Brahma” deve ser considerada como equivalente a uma apoteose absoluta, bastando para isso o fato de que Buda tinha sido um Brahma e mesmo Maha Brahma já durante vidas anteriores, e que de qualquer maneira a gnose de um Brahma é inferior à de um Buda. Aqui mesmo, neste mesmo instante, neste mundo, Buda tinha atingido essa libertação (vimutti), esta Extinção (nibbana = sânscrito nirvana) e essa Imortalidade (amatam) da qual ele iria daí por diante revelar o Caminho a toda a humanidade.
Nesse momento ele hesitou, sabendo que a Lei Eterna da qual se tornara o depositário, e à qual se identificava, seria difícil de compreender para os homens voltados para o mundo; foi tentado a permanecer um Buda solitário, guardando somente para si o fruto penosamente adquirido por uma busca que já empreendia há miríades de anos e cujo termo finalmente atingira. Se queremos ter uma ideia do Nibbana budista, é quase indispensável compreender a qualidade desse “Gozo”: é a suprema beatitude daquele que rejeitou a noção “eu sou”; daquele “que se renunciou totalmente” e que assim “depôs o seu fardo”. Foi essa a última e a mais sutil tentação que lhe infligiu Mara_(demon): que seria loucura abandonar essa felicidade penosamente adquirida, de regressar à vida ordinária para pregar o Caminho a uma humanidade que não queria nem ouvi-lo nem compreendê-lo. Mas diante da hesitação de Buda, os deuses ficaram desesperados: o mais elevado de todos, Brahma_Sahampati#Brahm.C4.81_Sahampati, surgiu diante dele, deplorando que “o Mundo se perdesse” e invocando o fato que havia no mundo alguns seres ao menos de visão suficientemente clara para escutar e entender seu ensinamento. Pelo amor desses, Buda consentiu, e declarou “abertas as Portas da Imortalidade”. Dispôs-se então a consagrar os quarenta e cinco anos que lhe restavam de vida neste mundo a “fazer girar a Roda da Lei”, isto é, a pregar a verdade libertadora, o Caminho que é necessário seguir para atingir o fim último, a significação da existência, a “finalidade derradeira da humanidade”.