Daumal (RDMA:105-121) – como pagar pelo conhecimento?

Excerto de DAUMAL, René. O Monte Análogo. Romance de Aventuras Alpinas, Não-Euclidianas e Simbolicamente Autênticas. Tr. Gian Bruno Grosso. São Paulo: Editora Horus, 2007, p. 100-112

Gian Bruno Grosso

[…] Não se vai a um país estrangeiro, para conseguir alguma coisa, sem uma certa provisão de moedas. Os exploradores, em geral, carregam consigo como moeda de troca com eventuais “selvagens” e “indígenas” todo tipo de bugigangas, canivetes, espelhos, artigos de toucador, remanescentes do Concurso dos Inventores Lépine, suspensórios reguláveis e esticadores de meias aperfeiçoados, enfeites, tecidos, sabonetes, aguardente, velhos fuzis, munição de festejo, sacarina, bonés, pentes, fumo, cachimbos, medalhas e grandes colares — sem falar nos artigos devocionais. Como podería acontecer, durante a viagem, e mesmo talvez no interior do continente, de encontrar povos pertencentes à humanidade ordinária, nós tínhamos nos abastecido de semelhantes objetos que poderíam nos servir como moeda de troca. Mas em nossas relações com os seres superiores do Monte Análogo, o que poderia constituir uma moeda de troca? O que possuíamos realmente de valor? Com o que poderiamos pagar o novo conhecimento que estávamos indo buscar? Iríamos mendigá-lo? Ou então deveriamos adquiri-lo a crédito? [100]

Cada um de nós fazia seu inventário, e cada um a cada dia encontrava-se mais pobre, não encontrando nada ao seu redor, nem em si mesmo que realmente lhe pertencesse. Foi assim que uma tarde estavam esses oito pobres homens e mulheres, desprovidos de tudo, olhando o sol pôr-se no horizonte.


Uma longa espera pelo desconhecido ameniza a força da surpresa. Eis-nos instalados em apenas três dias em nossa pequena casa provisória de Porto dos Macacos, nas encostas do Monte Análogo, e tudo já nos é familiar. […] […] um homem vestido como um montanhês nos recebeu sobre um tapete. Ele falava francês corretamente, mas, às vezes, tinha o sorriso interior de quem julga muito estranhas as expressões que era obrigado a utilizar para fazer-se compreender. Era certo que estava traduzindo — sem hesitações e sem incorreções —, mas traduzia visivelmente. Interrogou-nos, um de cada vez. Cada uma de suas perguntas – entretanto muito simples: quem éramos nós? O que queríamos? — nos encontrava desprevenidos, nos penetrava até as entranhas. Quem são vocês? Quem sou eu? Nós não podíamos lhe responder como a um agente consular ou a um encarregado da aduana. Dizer o próprio nome, a profissão? — o [106] que isso significa? Mas quem é você? E o que é que você é? As palavras que pronunciávamos – não tínhamos outras — eram sem vida, repugnantes ou ridículas como cadáveres. Sabíamos que doravante, diante dos guias do Monte Análogo, não mais podíamos pagar com meras palavras. Sogol, corajosamente, tomou a si relatar brevemente nossa viagem.

O homem que nos acolhera era um dos guias. Toda a autoridade, neste país, é exercida pelos guias da montanha, que constituem uma classe distinta e, além de sua profissão própria dos guias, assumem em turnos o papel das funções administrativas indispensáveis nos povoados do litoral e do sopé da montanha. Este nos deu as indicações necessárias sobre o país e sobre o que devíamos fazer.


[…] Para a primeira etapa, que levaria uma jornada, o caminho era bom e poderiamos utilizar os grandes e ágeis burros de carga da região; em seguida tudo devia seguir nas costas dos homens. Era então necessário alugar os animais e contratar os carregadores. O problema da moeda, que nos havia preocupado tanto, havia sido resolvido, ao menos provisoriamente, desde a nossa chegada. O guia que nos recebera nos tinha dado, como adiantamento, um sapo de fichas metálicas que aqui são usadas para as trocas de bens e serviços. Como havíamos previsto, nenhuma das nossas moedas tinha valor. Cada recém-chegado, ou grupo que chegava, recebia assim um certo adiantamento que lhe permitia cobrir suas necessidades iniciais, e comprometia-se a devolvê-lo ao longo de sua estada no continente do Monte Análogo. Mas como devolver? Havia inúmeras formas para reembolsar, e como essa questão da moeda está no cerne de toda a existência humana e de toda a vida social nas colônias do litoral, darei alguns detalhes a respeito.

Encontra-se aqui, muito raramente em baixa altitude, mais frequentemente à medida que subimos, uma pedra límpida e de uma dureza extrema, esférica e de tamanho variável, um verdadeiro cristal, mas, um caso extraordinário e desconhecido no resto do planeta, um cristal curvo! E chamado, no francês de Porto dos Macacos, peradám. Ivan Lapse fica perplexo sobre a formação e o sentido primitivo dessa palavra. Pode significar, segundo ele, “mais duro que o diamante”, e ele o é; ou então “pai do diamante”, e dizem que de fato o diamante é o produto da degeneração do peradám através de uma espécie de quadratura do círculo ou mais exatamente da cubatura da esfera; ou ainda a palavra significaria [109] “a pedra de Adão”, tendo alguma secreta e profunda conivência com a natureza original do homem. A limpidez dessa pedra é tão grande, e seu índice de refração tão próximo daquele do ar, apesar da alta densidade do cristal, que o olho não treinado mal e mal a percebe; mas para quem a procura com um desejo sincero e uma grande necessidade, ela se revela pelo seu brilho repentino, parecido com o das gotas de orvalho. O peradám é a única substância, o único objeto material ao qual os guias do Monte Análogo reconhecem um valor. Assim ele é a reserva de todas as moedas, da mesma forma como é o ouro entre nós.

Em verdade, a única maneira leal e perfeita de pagar a própria dívida é reembolsá-la com peradáms. Mas o peradám é raro, e difícil, muitas vezes perigoso, quer na sua procura quer para pegá-lo, porque freqüentemente é necessário retirá-lo de uma fenda na parede de um precipício, ou apanhá-lo na beira de um penhasco sobre uma placa de gelo em que ele veio fixar-se. Assim, depois de esforços que às vezes duram anos, muitas pessoas se desencorajam e retornam ao litoral onde procuram meios mais fáceis de pagar a sua dívida; esta, de fato, pode ser simplesmente reembolsada com fichas, e essas fichas podem ser obtidas por todos os meios ordinários: uns viram agricultores, outros artesãos, outros carregadores, e nós não iremos julgá-los, porque é graças a eles que é possível adquirir alimentos, alugar os burros de carga e contratar carregadores.

“E se não conseguirmos pagar a dívida?”, perguntou Arthur Beaver.

“Quando você cria pintinhos”, lhe foi respondido, “você adianta os grãos que deverão, quando chegar a hora, ser [110] reembolsados com ovos. Mas o que acontece com a galinha que na idade correspondente não bota?”

E cada um de nós engoliu silenciosamente a própria saliva.


[…] A vida econômica em Porto dos Macacos é muito simples, se bem que animada; mais ou menos como devia ser numa pequena aldeia européia antes da era industrial, porque nenhum motor térmico nem elétrico é admitido no país; todo o uso da eletricidade é proibido, o que nos surpreendeu bastante num país montanhoso. Também é proibido o uso de explosivos. Os colonos – franceses em sua grande maioria, eu já disse — têm suas igrejas, sua câmara de conselheiros, sua polícia; mas toda a autoridade vem do alto, quer dizer, dos guias de alta montanha, cujos representantes dirigem a administração e a polícia municipal. Essa autoridade não é contestada, porque ela está baseada na posse dos peradáms; ora, as pessoas que se fixaram no litoral só possuem fichas, que permitem os escambos necessários à vida do corpo mas não lhes conferem nenhum poder real. Mais uma vez não quero falar mal das pessoas que, desencorajadas pelas dificuldades da escalada, instalaram-se no litoral e nas encostas e organizaram sua própria vida; suas crianças, ao menos, graças a eles, graças ao primeiro esforço que eles fizeram para chegar até aqui, não precisam fazer esta viagem. Eles nasceram nas próprias encostas do Monte Análogo, e foram menos submetidos às nefastas influências das culturas degeneradas que florescem nos continentes, vivem em contato com os homens da montanha e estão prontos, se surgir neles o desejo e se sua inteligência despertar, a empreender a grande viagem a partindo lugar em que seus pais os abandonaram.

original

[…] Une autre question nous avait beaucoup préoccupés pendant ces jours d’attente. On ne va pas dans un pays étranger, pour acquérir quelque chose, sans une certaine provision de monnaie. Les explorateurs emportent en général avec eux, comme moyen d’échange avec d’éventuels « sauvages » et « indigènes », toute sorte de camelote et de pacotille, canifs, miroirs, articles de [105] Paris, rebuts du concours Lépine, bretelles à poulies et fixe-chaussettes perfectionnés, colifichets, cretonnes, savonnettes, eau-de-vie, vieux fusils, munitions anodines, saccharine, képis, peignes, tabac, pipes, médailles et grands cordons, — et je ne parle pas des articles de piété. Comme il pouvait nous arriver, au cours du voyage, et même peut-être à l’intérieur du continent, de rencontrer des peuples appartenant à l’humanité ordinaire, nous nous étions munis de semblables marchandises, pouvant servir de monnaie d’échange. Mais dans nos relations avec les êtres supérieurs du Mont Analogue, qu’est-ce qui pourrait constituer une monnaie d’échange? Que possédions-nous qui eût réellement de la valeur? Avec quoi pouvait-on payer la nouvelle connaissance que nous allions y chercher ? Allions-nous la mendier ? Ou bien devrions-nous l’acquérir à crédit?

Chacun faisait son inventaire, et chacun de jour en jour se sentait plus pauvre, ne voyant rien autour de lui ni en lui qui lui appartînt réellement. Si bien qu’un soir ce furent huit pauvres hommes ou femmes, démunis de tout, qui regardèrent le soleil descendre sur l’horizon.


Une longue attente de l’inconnu use les ressorts de la surprise. Nous voici installés depuis trois jours seulement dans notre petite maison provisoire de Port-des-Singes, sur les rives du Mont Analogue, et tout nous est déjà familier. […] […] un homme en tenue montagnarde nous reçut sur un tapis. Il parlait français parfaitement, mais avec parfois le sourire intérieur de quelqu’un qui trouve fort étranges les expressions qu’il doit employer pour se faire entendre. Il traduisait certainement, — sans hésitation et sans incorrection, mais il traduisait visiblement. Il nous interrogea l’un après l’autre. Chacune de ses questions, — pourtant toutes simples : qui étions-nous? pourquoi venions-nous ? — nous prenait au dépourvu, nous perçait jusqu’aux entrailles. Qui êtes-vous? Qui suis-je? Nous ne pouvions pas lui répondre comme à un agent [111] consulaire ou à un employé des douanes. Dire son nom, sa profession ? — qu’est-ce que cela signifie? Mais qui es-tu? Et qu’tst-ce que tu es ? Les mots que nous prononcions — nous n’en avions pas d’autres — étaient sans vie, répugnants ou ridicules comme des cadavres. Nous savions que désormais, devant les guides du Mont Analogue, nous ne pourrions plus nous payer de mots. Sogol, courageusement, prit sur lui de raconter brièvement notre voyage.

L’homme qui nous accueillait était bien un guide. Toute autorité est en ce pays exercée par les guides de montagne, qui forment une classe distincte, et, en dehors de leur métier propre de guides, assument à tour de rôle les fonctions administratives indispensables dans les villages de la côte et de la basse montagne. Celui-ci nous donna les indications nécessaires sur le pays et sur ce que nous devions faire.


[…] Pour la première étape, qui demanderait une journée, il y avait un bon sentier et nous pourrions utiliser les grands ânes bruns et agiles du pays ; ensuite, tout devait être porté à dos d’hommes. Il avait donc fallu louer des ânes et engager des porteurs. Le problème de la monnaie, qui nous avait si fort préoccupés, avait été résolu, provisoirement du moins, dès notre arrivée. Le guide qui nous avait reçus nous avait remis, à titre d’avance, un sac des jetons métalliques qui servent ici aux échanges de biens et de services. Comme nous l’avions prévu, aucune de nos monnaies n’avait cours. Chaque nouvel arrivant, ou groupe d’arrivants, reçoit ainsi une certaine avance qui lui permet de couvrir ses premiers frais, et qu’il s’engage à rembourser pendant son séjour au continent du Mont Analogue. [115] Mais comment rembourser ? Il y a plusieurs manières de rembourser, et comme cette question de la monnaie est à la base de toute l’existence humaine et de toute la vie sociale dans les colonies du littoral, je dois donner quelques détails à ce sujet.

On trouve ici, très rarement en basse montagne, plus fréquemment à mesure que l’on monte, une pierre limpide et d’une extrême dureté, sphérique et de grosseur variable, — un véritable cristal, mais, cas extraordinaire et inconnu sur le reste de la planète, un cristal courbe ! On l’appelle, dans le français de Port-des-Singes, péradam. Ivan Lapse reste perplexe sur la formation et le sens primitif de ce mot. Il peut signifier, selon lui, « plus dur que le diamant », et il l’est ; ou bien « père du diamant », et l’on dit que le diamant est en effet le produit de la dégénérescence du péradam par une sorte de quadrature du cercle ou plus exactement de cubature de la sphère ; ou encore le mot signifie-t-il « la pierre d’Adam », ayant quelque secrète et profonde connivence avec la nature originelle de l’homme. La limpidité de cette pierre est si grande, et son indice de réfraction si proche de celui de l’air malgré la [116] grande densité du cristal, que l’œil non prévenu la perçoit à peine; mais à qui la cherche avec un désir sincère et un grand besoin, elle se révèle par l’éclat de ses feux semblables à ceux des gouttes de rosée. Le péradam est la seule substance, le seul corps matériel auquel les guides du Mont Analogue reconnaissent une valeur. Aussi est-il le gage de toute monnaie, comme l’or chez nous.

En vérité, le seul mode loyal et parfait de payer sa dette, c’est de la rembourser en péradams. Mais le péradam est rare, et difficiles, voire dangereux, sa quête et son ramassage, car souvent il faut aller l’extraire d’une fissure dans la paroi d’un précipice, ou le prendre au bord d’une crevasse sur une pente de glace vive où il est venu s’encastrer. Aussi, après des efforts qui parfois durent des années, bien des gens se découragent et redescendent sur la côte où ils cherchent des moyens plus faciles de payer leur dette ; celle-ci, en effet, peut être simplement remboursée en jetons, et ces jetons peuvent se gagner par tous les moyens ordinaires : les uns se font cultivateurs, d’autres artisans, d’autres débardeurs, et nous ne médirons pas d’eux, car c’est grâce à eux qu’il est possible d’acheter [117] sur place des vivres, de louer des ânes et d’engager des porteurs.

— Et si l’on n’arrive pas à payer sa dette ? avait demandé Arthur Beaver.

— Quand vous élevez des poussins, lui fut-il répondu, vous leur avancez du grain qu’ils devront, devenus poules, vous rembourser en œufs. Mais lorsqu’une poulette, l’âge venu, ne pond pas, qu’en advient-il?

Et chacun de nous avait silencieusement avalé sa salive.


[…] La vie économique, à Port-des-Singes, est fort simple, quoique animée ; à peu près ce qu’elle devait être dans une petite bourgade européenne avant le machinisme, car aucun moteur thermique ni électrique n’est admis dans le pays : tout usage de l’électricité y est interdit, ce qui nous [119] surprit assez, dans un pays de montagnes. Interdit aussi l’usage des explosifs. La colonie, — française dans sa majorité, ai-je dit, — a ses églises, son conseil municipal, sa police ; mais toute autorité vient d’en haut, c’est-à-dire des guides de haute montagne, dont des délégués dirigent l’administration et la police municipales. Cette autorité est incontestée, car elle est fondée sur la possession des péradams ; or, les gens qui se sont fixés sur le littoral ne possèdent que des jetons, qui permettent les échanges indispensables à la vie des corps mais ne confèrent aucune puissance réelle. Encore une fois, ne médisons pas de ces gens qui, découragés par les difficultés de l’ascension, se sont installés sur le rivage et en basse montagne et s’y sont fait leur petite vie ; leurs enfants, au moins, grâce à eux, grâce au premier effort qu’ils ont fait pour venir jusqu’ici, n’ont pas ce voyage à faire. Ils naissent sur le rivage même du Mont Analogue, moins soumis aux néfastes influences des cultures dégénérées qui fleurissent nos continents, en contact avec les hommes de la montagne, et prêts, si le désir en eux se lève et si l’intelligence s’éveille, à entreprendre le [120] grand voyage à partir du lieu où leurs parents l’ont abandonné. (p. 105-121)

Gurdjieff, René Daumal (1908-1944)