Dostoiévski (Subsolo:C2) – qualquer consciência é uma doença

Tenho agora vontade de vos contar, senhores, queirais ouvi-lo ou não, por que não consegui tornar-ME sequer um inseto. Vou dizer-vos solenemente que, muitas vezes, quis tornar-ME um inseto. Mas nem disso fui digno. Juro-vos, senhores, que uma consciência muito perspicaz é uma doença, uma doença autêntica, completa. Para o uso cotidiano, seria mais do que suficiente a consciência humana comum, isto é, a metade, um quarto a menos da porção que cabe a um homem instruído do nosso infeliz século dezenove (…)

(…) Apesar de tudo, estou firmemente convencido de que não só uma dose muito grande de consciência, mas qualquer consciência, é uma doença. Insisto nisso. (…) Digam-ME o seguinte: por que ME acontecia, como se fosse de propósito, naqueles momentos — sim, exatamente naqueles momentos em que eu era capaz de melhor apreciar todas as sutilezas do “belo e sublime”, como outrora se dizia entre nós —, por que ME acontecia não apenas conceber, mas realizar atos tão feios, atos que… bem, numa palavra, atos como os que todos talvez cometam, mas que, como se fosse de propósito, ME ocorriam exatamente nos momentos em que eu mais nitidamente percebia que de modo algum devia cometê-los? Quanto mais consciência eu tinha do bem e de tudo o que ébelo e sublime”, tanto mais ME afundava em meu lodo, e tanto mais capaz de imergir nele por completo. Porém o traço principal estava em que tudo isso parecia ocorrer-ME não como que por acaso, mas como algo que tinha de ser. Dir-se-ia que este era o meu estado normal e que não se tratava de doença, de um defeito, de modo que, por fim, perdi até a vontade de lutar com este defeito. Finalmente, quase acreditei (e talvez tenha acreditado realmente) que o meu estado normal era esse. E, no início, quanto não sofri nessa luta! (…) Vou explicar-vos: o prazer provinha justamente da consciência demasiado viva que eu tinha da minha própria degradação; vinha da sensação que experimentava de ter chegado ao derradeiro limite; de sentir que, embora isso seja ruim, não pode ser de outro modo; de que não há outra saída; de que a pessoa nunca mais será diferente, pois, ainda que nos sobrasse tempo e para isto, certamente não teríamos vontade de fazê-lo e, mesmo que quiséssemos, nada faríamos neste sentido, mesmo porque em que nos transformaríamos? E o principal, o fim derradeiro, está em que tudo isto ocorre segundo leis normais e básicas da consciência hipertrofiada, de acordo com a inércia, decorrência direta dessas leis, e, por conseguinte, não é o caso de se transformar; simplesmente não há nada a fazer. Resulta o seguinte, por exemplo, da consciência hipertrofiada: tu tens razão em ser um canalha, como se fosse consolo para um canalha perceber que é realmente um canalha. Mas chega… EH, tagarelei muito, mas o que ficou explicado?… Como se explica aí o prazer? Mas eu explico! Hei de ir até o fim! Foi por isso que tomei da pena

(DOSTOIÉVSKI, Fiódor. Memórias do subsolo. Tr. Boris Schnaiderman. São Paulo: 34, 2009)