Dubois (DDAG) – experiências e mundos

Em primeiro lugar, observemos que a estrutura da realidade nesse śivaismo é bem diferente da estrutura das outras tradições da Índia, especialmente daquelas que o precederam. De fato, de acordo com o budismo antigo e as tradições bramânicas clássicas, como o Sāmkhya e o Yoga de Patanjali, a pessoa deve aspirar a se livrar inteiramente do ciclo de renascimentos (samsāra). Entretanto, para eles, tudo, absolutamente tudo, faz parte desse doloroso devir. O ensinamento do budismo antigo sobre esse ponto é bem conhecido, ilustrado pela “roda do devir”. Ela inclui os mundos do inferno, dos animais e do homem, mas também os mundos divinos, os mundos de pura felicidade, pura luz e até mesmo aqueles além de toda forma, constituídos apenas por estados de meditação cada vez mais profundos e despojados. O Sāmkhya, da mesma maneira, rejeita como dolorosas absolutamente todas as experiências, desde as mais comuns até os estados de absorção, por mais belas que sejam. O mesmo acontece com o famoso Vedānta de Śamkara. O que eles têm em comum pode ser resumido em poucas palavras: toda experiência é dolorosa e se deve à ignorância da realidade. A única alternativa, então, é entre viver e sofrer, por um lado, e, por outro, aniquilar todo germe de experiência para alcançar um além indescritível, uma “extinção” ( nirvāna).

No śivaismo, assim como no budismo do “grande veículo”, a situação é bem diferente. Nem toda experiência se deve à ignorância da realidade. Pelo contrário, há dois tipos principais de experiência e mundos correspondentes. Estamos descrevendo aqui apenas o esquema do Xivaísmo, mas há muitas analogias significativas com o Budismo. Por um lado, há o mundo da matéria como o conhecemos, matéria eterna e inconsciente, que inclui os infernos, os universos dos animais e dos seres humanos, bem como os “paraísos” dos deuses supremos de outras religiões, como Vishnu. Acima desse “nó” da Māyā — dado que esse mundo é uma desvantagem em relação ao que as almas realmente são — existem os mundos de pura experiência, que incluem os diferentes graus de almas liberadas. Essas almas mais ou menos divinizadas são Mantras ou Vidyās masculinos, “ciências” femininas. São estes seres que são invocados durante os rituais por meio de mantras ou fórmulas sagradas. Quando sua função é cumprida, tornam-se iguais ao Senhor. Portanto, existem mundos dentro do samsāra e outros mundos acima dele. Isso equivale a dizer que é concebível viver em um corpo e, ao mesmo tempo, estar absolutamente livre da matéria e das consequências de suas ações (karman). Esta é uma ideia decisiva, pois na Índia pré-tantrismo, ter um corpo era o resultado de ações passadas e a causa de todo o sofrimento. Ao propor uma nova visão da realidade, o tantrismo reabilitou todo o campo da experiência corporal. É importante lembrar disso, pois a tradição kaula de Abhinavagupta, com sua sacralização do corpo, apenas aprofunda uma crença que está presente desde as origens do tantrismo.

E esse é o nosso segundo ponto. Para o budismo e o bramanismo antigo, a liberdade do ciclo de renascimentos significa liberdade do corpo. Para o śivaismo tântrico, entretanto, é mais importante substituir um corpo impuro por um puro e imortal. Essa transformação do corpo é realizada pelo mestre durante a iniciação, e o adepto a repete todos os dias durante as sessões de adoração ao Senhor. Além disso, o próprio Senhor possui um corpo composto por seus poderes, personificados por deusas encarnadas nos mantras que o iniciado manipula durante seu ritual diário, à imagem do que o Senhor faz durante suas criações e destruições cósmicas. A primeira parte do culto consiste em destruir o corpo comum do adepto para substituí-lo por um corpo puro e indestrutível feito de poder mântrico, o que torna o adepto idêntico ao Senhor, porque mesmo nesse sistema relativamente dualista “somente Śiva pode adorar Śiva”. O corpo é, portanto, o foco de todas as práticas rituais e iogues, sendo a última nada mais do que uma internalização dos rituais. Dessa forma, o corpo está realmente no centro de todos os rituais. De certa forma, é o templo, o emblema do Senhor, seu “sinal” (linga) no qual os deuses e deusas que formam o “corpo” divino de Deus virão habitar durante a cerimônia, assim como fazem com uma estátua. De fato, toda a liturgia śivaita expressa a ideia de que o cosmo é o corpo de Deus. Os ciclos de criação e reabsorção são seus despertares e sonos, suas exalações e inspirações. Portanto, a liturgia é simplesmente uma reprodução dessa atividade cíclica na escala de um corpo individual. Primeiro o corpo, depois a imaginação, a respiração ou qualquer objeto externo, como a linga, o tridente, mas também um texto, uma pedra ou um simples espaço de terra podem se tornar objetos dessas transformações mântricas. A cada vez, depois de ter imposto toda a hierarquia cósmica em seu corpo usando sua mão previamente divinizada, o adepto faz o mesmo em um linga, por exemplo. Dessa forma, reproduz a atividade divina, que consiste em projetar seus Poderes sobre a matéria inerte para transformá-la nos mundos e corpos de seres que virão a consumir as consequências de seus atos passados.

David Dubois