A maior parte dessas concepções e comportamentos contraditórios é causada pela incerteza quanto à localização da alma. Há uma crença bastante difundida segundo a qual os mortos frequentam seu ambiente familiar, embora se acredite que eles ao mesmo tempo estejam presentes em seus túmulos e no além. Essa multilocação paradoxal da alma é explicada de modos diversos segundo os diferentes sistemas religiosos. Uns afirmam que parte da alma permanece junto da moradia ou túmulo, enquanto a “essência” vai para o reino dos mortos; outros acreditam que a alma permaneça por algum tempo próxima dos vivos, antes de se juntar à comunidade no outro mundo. Apesar dessa variedade de interpretações, há uma compreensão tácita, entre a maior parte das religiões, de que os mortos estão presentes simultaneamente no túmulo e em algum domínio espiritual. Essa concepção, bastante difundida no mundo mediterrâneo, foi devidamente aceita pela Igreja Cristã. Devo enfatizar que se trata de uma tradição popular, pré-cristã, posteriormente aceita pela Igreja. A mesma crença, contudo, foi aceita pelos teólogos mais sérios, como Santo Ambrósio de Milão. Quando seu irmão, Satyrus, morreu, em 379, Ambrósio o enterrou perto do corpo de um mártir. E o grande teólogo compôs o seguinte epitáfio: “Ambrósio enterrou seu irmão Mânlio Satyrus à esquerda de um mártir; como prêmio por sua santa vida, possa a umidade desse sangue santo filtrar-se até ele e impregnar o seu corpo.” Dessa forma, apesar de se supor que Satyrus estava agora no Céu, o sangue do mártir podia ainda agir sobre Satyrus enterrado no túmulo. Essa crença na bilocação dos mortos não tem nada a ver com a doutrina cristã da ressurreição do corpo; porque, conforme observa sensatamente Oscar Cullmann, “a ressurreição do corpo é um novo ato de criação que abarca tudo. ..,” e “está ligado a um processo divino total que implica em libertação”.
A convicção quase universal de que os mortos estão simultaneamente presentes na terra e no mundo espiritual é altamente significativa. Ela revela a esperança secreta de que, apesar de todos os sinais contrários, os mortos podem, de algum modo, interferir no mundo dos vivos. Conforme já observamos, o advento da morte faz do homem um ser espiritual e, reciprocamente, o processo de espiritualização é compreendido e expresso através de símbolos e metáforas de vida. Isto faz-nos lembrar da expressão recíproca dos atos mais importantes da vida em termos de morte e vice-versa; por exemplo, o casamento visto como morte, a morte como nascimento e daí por diante. Em última análise, esse processo paradoxal revela uma nostalgia e talvez uma esperança secreta de se alcançar um nível de significação em que vida e morte, corpo e espírito sejam aspectos ou estágios dialéticos de uma realidade última. De maneira indireta, isso implica numa depreciação da condição de puro espírito. Com efeito, pode-se dizer que, com exceção do orfismo, platonismo e gnosticismo, as antropologias do Oriente Próximo e da Europa concebiam o homem ideal não como unicamente espiritual, mas como um espírito encarnado. Concepções semelhantes são observáveis em algumas mitologias arcaicas. Além do mais, é possível encontrar em certos movimentos milenarista:, primitivos, a esperança escatalógica da ressurreição do corpo, uma esperança afirmada pelo Zoroastrismo, Judaísmo, Cristianismo e Islamismo.
A expressão paradoxal em termos recíprocos dos simbolos e metáforas de vida em símbolos e metáforas de morte já foi objeto de estudo de alguns psicólogos, linguistas e filósofos, mas, pelo menos que eu saiba, nenhum historiador de religiões contribuiu significativamente para a solução dessa questão. E certo que o historiador de religiões pode descobrir significados e intenções ocultas aos outros pesquisadores. Uma conclusão pode ser tirada dessa interpretação paradoxal em termos recíprocos da vida e da morte: qualquer que seja a concepção ou crença, estamos constantemente experimentando modalidades e níveis de morte. Isso quer dizer mais que uma simples confirmação do truísmo biológico de que a morte está sempre presente na vida. O mais importante é que estamos, consciente ou inconscientemente, explorando os mundos imaginários da morte e incansavelmente inventando outros. Isso quer também dizer que estamos antecipando experiências de morte mesmo quando experimentamos as mais criadoras epifanias de vida. [Eliade]