Erros Verdade

Louis-Claude de Saint-Martin — DOS ERROS E DA VERDADE
L. Cl. de Saint-Martin, Dos erros e da verdade (1775), in Oeuvres, R. Amadou edit, Éd. G. Olms, Hildesheim, RFA, t. I, p. 30-35; trad. Yara Azeredo Marino

Se o bom Princípio é a unidade essencial, se é a bondade, a pureza & a própria perfeição, não pode sofrer divisão, contradição ou mácula. Evidencia-se então que o Autor do mal deve ter sido inteiramente separado &C rejeitado pelo único ato de oposição de sua vontade à vontade do bom Princípio; de modo que desde então só lhe restou um poder & uma vontade perversa, sem que o bem se comunicasse ou participasse. Inimigo voluntário do bom Princípio & da regra única, eterna & invariável, que bem, que lei poderia haver nele exterior a essa regra, visto que é impossível que um único Ser seja ao mesmo tempo bom & mau, que produza ao mesmo tempo ordem &C desordem, o puro & o impuro? Compreende-se então facilmente sua separação absoluta do bom Princípio, uma vez que ele foi necessariamente afastado de todo bem, não se mostrando apto a conhecer & a produzir nada de bom, & não podendo realizar mais do que atos sem regra &C sem ordem, opondo-se absolutamente ao bem & à verdade.

Afunda-se assim em suas próprias trevas, não sendo suscetível de nenhuma luz & de nenhum retorno ao bom Princípio. Pois, para que ele pudesse dirigir os seus desejos em direção a essa verdadeira luz, necessitaria, antes, que o conhecimento lhe fosse entregue, precisaria que fosse capaz de conceber um bom pensamento; & de que modo a luz encontraria acesso nele, se sua vontade & todas as suas faculdades se encontram totalmente impuras & corrompidas? Em suma, uma vez que ele não apresenta nenhuma correspondência com o bem, & sendo que não está em seu poder nem ao menos conhecê-lo, senti-lo, a faculdade & a liberdade de lá voltar se mostram sempre sem efeito para ele, e é isso que torna tão terrível a privação à qual ele está condenado.

A lei da Justiça se executa igualmente sobre o homem, ainda que por meios diferentes: assim, ela nos fornecerá do mesmo modo as luzes que nos guiarão nas pesquisas que faremos a seu respeito.

Não há ninguém de boa-, cuja razão não seja obscurecida ou prevenida, que não admita que a vida corporal do homem representa uma privação & um sofrimento quase contínuos. Assim, de acordo com as ideias que temos a respeito da Justiça, não sem razão olharemos o rigor dessa vida corporal como um momento de castigo & de expiação. Mas não podemos tomá-la como tal sem pensar, no mesmo instante, que deve ter existido para o homem um estado anterior e preferível àquele em que ele se encontra no presente & podemos afirmar que tanto seu estado atual é limitado, penoso & semeado de desgostos quanto o outro deve ter sido ilimitado & repleto de delícias. Cada um de seus sofrimentos é um indício da felicidade que lhe falta; cada uma de suas privações prova que ele foi feito para a bem-aventurança; cada uma de suas sujeições anunciam uma antiga autoridade. Em suma, sentir que hoje não possui nada é uma prova secreta de que outrora ele teve tudo.

Por meio do sentimento doloroso da terrível situação em que nos encontramos agora, podemos ter uma ideia do estado feliz em que vivemos precedentemente. Ele não é no presente o dono de seus pensamentos, &C é um tormento para ele atender os pensamentos que deseja & repelir os que teme. Sentimos então que ele foi feito para dispor desses mesmos pensamentos, & que ele podia produzi-los à sua vontade, sendo fácil presumir as vantagens inapreciáveis ligadas a um poder paralelo. Ele não dispõe atualmente de paz & tranquilidade a não ser por esforços infinitos & sacrifícios penosos. Concluímos que ele foi feito para gozar, perpetuamente & sem esforço, de um estado calmo & feliz, & que a presença da paz tem sido sua verdadeira morada. Tendo a faculdade de tudo ver & de tudo conhecer, rasteja entretanto nas trevas, mas isso em consequência de sua ignorância & de sua cegueira. Isso não comprova que a luz é seu elemento? Enfim, seu corpo está sujeito à destruição & a essa morte, da qual ele é o único Ser que possui a ideia na natureza, é o passo mais terrível de sua jornada corporal, o ato mais humilhante para ele & do qual tem mais horror. Por que essa lei, tão severa & tão medonha para o homem, não nos faria conceber que seu corpo teria recebido uma infinitamente mais gloriosa & deveria gozar de todos os direitos da imortalidade?

De onde poderia provir esse estado sublime que tornava o homem tão grande & tão feliz, se isso não é do conhecimento íntimo & da presença contínua do bom Princípio, pois é apenas em si que se encontra a fonte de todo o poder & de toda a felicidade? E por que esse homem se consome na ignorância, fraqueza & miséria, se não é porque está separado desse mesmo Princípio, que representa a única luz & o único apoio de todos os Seres?

É aqui que, ao recordar o que disse anteriormente sobre a justiça do primeiro Princípio, & sobre a liberdade dos Seres originados d’Ele, sentiremos perfeitamente que se em consequência de seu crime o Princípio do mal suporta ainda os padecimentos ligados à sua vontade rebelde, da mesma forma os sofrimentos atuais do homem são apenas efeitos naturais de um primeiro afastamento. Da mesma forma, também, esse afastamento só pode ter se originado da liberdade do homem, que, ao conceber um pensamento contra a Lei suprema, teria aderido a ele por sua vontade.

De acordo com o conhecimento das relações, que se encontram entre o crime & os sofrimentos do mau Princípio, eu poderia, seguindo sua analogia, presumir qual é a natureza do crime do homem original, pela natureza de sua pena. Poderia até, por esse meio, acalmar os murmúrios que não cessam de se elevar a respeito de estarmos condenados a participar de seu castigo, ainda que não tenhamos de modo algum participado de seu crime. Mas essas verdades seriam desprezadas pela multidão & aprovadas por tão pequeno número, que eu acreditaria estar cometendo em erro ao proceder à sua exposição claramente. Contentar-me-ei então em colocar os leitores no caminho, por um quadro figurativo do estado do homem em sua glória, & das penas às quais ele se expõe quando de seu julgamento.

Não há, em hipótese alguma, uma origem que ultrapasse a sua; pois ele é mais antigo do que qualquer Ser da Natureza, ele existia antes do nascimento do mínimo germe &, entretanto, não veio ao mundo senão depois deles. Mas o que o elevou bem acima de todos esses Seres é que eles estavam sujeitos a nascer de um pai e de uma mãe, ao passo que o homem não teve mãe. Além do mais, a função deles era completamente inferior à sua: a do homem era sempre lutar para fazer cessar a desordem & reconduzir tudo à Unidade; e a função desses Seres era obedecer ao homem. Mas como os combates que o homem deveria travar poderiam ser muito perigosos para ele, foi revestido de uma armadura impenetrável, à qual ele podia variar à vontade, & da qual devia fazer cópias iguais & absolutamente de acordo com o seu modelo.

Também estava munido de uma lança composta de quatro metais tão bem amalgamados, que, desde a existência do mundo, não se poderia jamais separá-los. Essa lança era capaz de queimar como o próprio fogo; e era tão afiada que nada para ela se fazia impenetrável, & tão ativa que golpeava sempre os dois lados ao mesmo tempo. Todas essas vantagens, acrescentadas a uma infinidade de outras que o homem recebera ao mesmo tempo, tornavam-no verdadeiramente forte & temível.

Louis-Claude de Saint-Martin