Não há nada que possa melhor sintetizar o que lhe disse neste Capítulo, que estas “Etapas”, que não se sucedem, propriamente, no tempo, mas servem como “Dimensões”, não de “um talento isolado, de antigos e legendários sábios, e sim (de) um processo de florescimento através dos membros de toda cultura …”. Hixon, num pequeno livro extraordinário sobre as tradições sagradas, ainda cai no erro habitual, quando se refere ao processo como aquele em que “nossa consciência gradualmente se torna transparente à sua própria natureza intrínseca … (ou) se purifica ou fica mais clara pela consciência de si mesma”. O “erro habitual”, agora o leitor já identifica como o que eu chamo de “consciência de si”, sobretudo nos seus tons transcendentais, ou hegelianos.
Na China medieval, a Sabedoria foi retratada em dez pinceladas simples e espontâneas, como é característico da pintura Zen. Os originais estão provavelmente perdidos, mas são atribuídos a um mestre chinês do século XII, Kakuan Shien, junto com os seus comentários. Costuma-se, hoje, citá-los, no Ocidente, tal como aparecem n’Os Três Pilares do Zen, de Kapleau. É sabido que Suzuki, um dos grandes introdutores do budismo no Ocidente contemporâneo,, assinava-se wu shih, “ninguém em especial”. Ao contrário dos santos, com suas auréolas e milagres, o sábio, na sua manifestação mais prístina, é o homem comum, a quem podemos encontrar em toda parte, sem que sejamos de nenhum modo ofuscados pela sua presença. De Eston, em artigo recente, transcreve, a respeito, o que disse Dogen:
Estudar o budismo é estudar a si mesmo. Estudar a si mesmo é esquecer-se de si mesmo. Esquecer-se de si mesmo é ser um com todas as coisas. Ser um com todas as coisas é ser iluminado por todas elas, e essa iluminação sutil, que não deixa traços, prossegue para sempre.
O que diz esse mestre é a síntese que procurei empreender, neste Capítulo, entre Consciência e Filosofia, Clareza e Obscuridade, Transparência e Opacidade, Individualidade e Universalidade, mas sem nenhum compromisso com a filosofia hegeliana. O boi é o símbolo, nesse pastoreio, da Verdadeira Natureza, ou Tathagata. Seu pastoreio, ao mesmo tempo que tem grande valor poético e encerra inestimáveis lições filosóficas, é extremamente irônico — como quase tudo, no Zen —, pois não se pode procurar o que jamais foi, realmente, perdido, e muito menos buscá-lo de etapa em etapa, pois não se chega através do tempo ao que não está no tempo. A Verdadeira Natureza é aquilo que somos, portanto é a resposta à pergunta por quem sou e o atendimento à exortação para que conheçamos a nós mesmos. A “contemplação” — para usar termos ocidentais — do pastoreio é, assim, um “exercício espiritual”, do mesmo modo que o mito que desenvolvi na primeira metade deste Capítulo é um “arcano”, ou seja, uma estrutura simbólica em que o Ser ao mesmo tempo se esconde e se mostra.
“No ensinamento budista”, diz muito bem Hixon, “nossa natureza intrínseca mostra-se como aquilo que não tem natureza intrínseca.” Seu “pastoreio” é, portanto, o pastoreio do Vazio, e confunde-se com a própria vida do homem comum, pois “todos os desejos expressam, de maneira mais ou menos transparente, o anseio de realização suprema”:
O Boi jamais se perdeu. Porque procurá-lo?
É o dar-se conta da inexistência de resposta para a pergunta socrática — o que só é possível se entendermos o filosofar como a compreensão da pergunta — que faz florescer a compaixão, ali onde o “perguntador”, o “buscador” extingue-se. Não há busca autêntica, se não o for do impossível. A Consciência, vimos no mito do Jogo de Luz, jamais se perde: somos nós que nos perdemos. Projetar a compreensão no “futuro” é perder a oportunidade de compreender. Ou se compreende agora, ou jamais se compreenderá. Seguir um caminho, ou um método, é afastar-se da possibilidade de compreender. Pois o que há de ser compreendido é todo o emaranhado do novelo de linha, incluindo aquele que tece. A ilusão da Existência, é uma Ilusão Interativa, em que o iludido é cúmplice do ilusionista, já que são uma e a mesma coisa. Ao anoitecer, portanto, ouça o desejo, como você ouve as cigarras cantando nas árvores.
Não havendo porque respeitar a letra do Zen, aqui vai uma paráfrase, que aproveita, como versos, partes dos “comentários” tradicionais:
O Pastoreio do Boi
(As dez etapas da Iluminação)
1. A Procura do Boi
Desolado, pelas florestas,
com medo, o Homem Comum
procura o Boi e não o encontra.
Caminha por muitas trilhas,
ao longo de rios sem nome,
na densa mata escura.
Cansado, o coração pesado,
busca, e não encontra.
Entretanto, ao entardecer,
escuta as cigarras cantando nas árvores.
2. O Encontro das Pegadas
Nas sublimes palavras dos sábios,
o Homem Comum
vê inúmeras pegadas e rastros
na selva pisoteada.
Até que distância pode discernir as pegadas?
Mesmo as gargantas mais profundas
das mais altas montanhas
não escondem o nariz desse Boi
que se ergue diretamente ao Céu.
3. O Primeiro Vislumbre
Como o sal na água,
como o canto das cigarras,
como o gorjeio dos pássaros,
como o brilho do sol ondulando nos salgueiros,
em tudo o que percebe está o Boi.
Onde poderia esconder-se?
4. A Captura
O Boi Encontrado é força selvagem,
indomável,
que anseia por pastagens cheirosas.
O Homem Comum captura
o que precisa de cordas e chicote.
5. A Domesticação
Com firmeza,
o Boi não precisa de cabresto.
Segue livremente o dono, de bom grado,
onde quer que ele vá,
em misteriosa normalidade.
6. A Volta à Casa
Montado no Boi,
o Homem Comum é livre
como a brisa fraca que sopra
sempre onde ele está.
Em serena tranquilidade,
canta com os camponeses e as crianças,
de volta para casa.
Esse Boi já não precisa
nem de uma folha de relva.
7. O Boi Esquecido, o Eu Solitário
Desapareceu o Boi
que levou o Homem Comum para casa.
Lá estão, inúteis,
o chicote e a corda.
As nuvens luminosas
banham eternamente
o eu solitário.
8. O Boi Esquecido, o Eu Esquecido
O Homem Comum não é um Buda,
pois no fogo ardente,
não há floco de neve que subsista.
O Homem Comum tampouco é um não-Buda.
As centenas de pássaros já desistem
de encher de flores a seu quarto.
9. O Regresso à Fonte
Crescer e decrescer, ir e vir,
manifestam a Fonte.
As flores vermelhas desabrocham vermelhas.
Na eterna primavera,
as montanhas azuis são azuis.
Foi em vão que o Homem Comum deu seus passos.
Desde o mais remoto princípio
jamais houve sequer um grão de pó
que cobrisse a intrínseca pureza.
10. A Entrada no Mercado com Mãos Prestativas
Descalço,
o Homem Comum entra no mercado.
Como é largo o seu sorriso!
Mesmo os mais sábios não podem encontrá-lo.
Sem nenhum poder,
faz árvores secas florescerem de repente.
Errou Nietzsche, quando disse, referindo-se aos budistas: “eles encontram um inválido, ou um velho, ou um cadáver, e imediatamente dizem, a vida está refutada”.