René Guénon — O SIMBOLISMO DA CRUZ
Devemos relembrar aqui, pelo menos brevemente, a distinção fundamental entre “Si” e “eu”, ou “personalidade” e “individualidade”, sobre a qual já demos todas as explicações necessárias em outro lugar. O “Si”, como já dissemos, é o princípio transcendente e permanente do qual o ser manifestado, o ser humano, por exemplo, é apenas uma modificação transitória e contingente, uma modificação que não pode de forma alguma afetar o princípio. Imutável em sua própria natureza, desenvolve suas possibilidades em todas as modalidades de realização, em uma multitude indefinida, que é para o ser total tantos estados diferentes, estados cada um dos quais tem suas condições limitadoras e determinantes de existência, e dos quais apenas um constitui a parte, ou melhor, a determinação particular desse ser que é o “eu” ou a individualidade humana. Além disso, esse desenvolvimento é realmente um desenvolvimento apenas na medida em que é considerado do ponto de vista da manifestação, fora da qual tudo deve necessariamente estar em perfeita simultaneidade no “presente eterno”; e é por isso que a “atualidade permanente” do “Si” não é afetada por ele. O “Si” é, portanto, o princípio pelo qual todos os estados de ser existem, cada um em seu próprio domínio, que podemos chamar de grau de existência; e isso deve ser entendido não apenas como estados manifestados, individuais como o estado humano ou supraindividuais, ou seja, em outras palavras, formais ou informais, mas também, embora a palavra “existir” se torne imprópria, de estados não manifestados, incluindo todas as possibilidades que, por sua própria natureza, não são suscetíveis de qualquer manifestação, bem como as possibilidades de manifestação no modo principial; mas esst “Si” nele mesmo não é senão por si, não tendo e não sendo capaz de ter, na unidade total e indivisível de sua natureza íntima, qualquer princípio que lhe seja externo.
(…)
Essa multiplicidade de estados de ser, que é uma verdade metafísica fundamental, já é verdadeira quando nos limitamos a considerar os estados de manifestação, como acabamos de fazer aqui, e como devemos fazer quando estamos lidando apenas com a Existência; é, portanto, verdadeira a fortiori se considerarmos tanto os estados de manifestação quanto os estados de não-manifestação, os quais, em seu conjunto, constituem o Ser total, considerado, então, não mais no domínio exclusivo da Existência, mesmo tomada em toda a sua extensão, mas no domínio ilimitado da Possibilidade universal. Deve-se entender claramente, de fato, que a Existência contém apenas as possibilidades de manifestação e, mesmo assim, com a restrição de que essas possibilidades são concebidas apenas na medida em que se manifestam de fato, pois, na medida em que não se manifestam, ou seja, principialmente, estão no nível do Ser. Consequentemente, a Existência está longe de ser toda Possibilidade, concebida como verdadeiramente universal e total, fora e além de todas as limitações, incluindo até mesmo aquela primeira limitação que constitui a determinação mais primordial de todas, ou seja, a afirmação do puro Ser1.
Deve-se notar que os filósofos, ao construírem seus sistemas, sempre afirmam, consciente ou inconscientemente, impor alguma limitação à Possibilidade universal, o que é contraditório, mas que é exigido pela própria constituição de um sistema como tal; poderia até ser bastante curioso fazer a história das várias teorias filosóficas modernas, que são aquelas que apresentam esse caráter sistemático no mais alto grau, a partir desse ponto de vista das supostas limitações da Possibilidade universal. ↩