Guénon Portas Solsticiais

René Guénon — SÍMBOLOS DA CIÊNCIA SAGRADA

AS PORTAS SOLSTICIAIS
Dissemos que as duas portas zodiacais, respectivamente a entrada e a saída da “caverna cósmica”, e que certas tradições designam como a “porta dos homens” e a “porta dos deuses”, devem corresponder aos dois solstícios. É preciso agora esclarecer que a primeira corresponde ao solstício de verão, isto é, ao signo de Câncer (no hemisfério norte), e a segunda ao solstício de inverno, ou seja, ao signo de Capricórnio. Para compreender a razão disso, é necessário nos referirmos à divisão do ciclo anual em duas metades, uma “ascendente” e a outra “descendente”. A primeira é o período do curso do Sol para o norte (uttarayana), indo do solstício de inverno para o solstício de verão; a segunda é a do curso do Sol para o sul (dakshinayana), indo do solstício de verão para o solstício de inverno.1 Na tradição hindu, a fase “ascendente” está relacionada ao deva-yana, (“caminho dos deuses”) a fase “descendente” ao pitri-yana (“caminho dos pais” ou “antepassados”),2 o que coincide exatamente com as designações das duas portas que acabamos de mencionar: a “porta dos homens” é a que dá acesso ao pitri-yanna, e a “porta dos deuses” é a que dá acesso ao deva-yana. Elas devem portanto situar-se respectivamente no início das duas fases correspondentes, isto é, a primeira deve estar bem no solstício de verão e a segunda no solstício de inverno. Nesse caso, contudo, trata-se na verdade não de uma entrada e de uma saída, mas de duas saídas diferentes, o que se deve ao fato de que, nesse caso, o ponto de vista é diferente daquele que se refere de modo especial ao papel iniciático da caverna, conciliando-se no entanto perfeitamente com ele. De fato, a “caverna cósmica” é considerada como o lugar da manifestação do ser: após ter-se manifestado num certo estado, tal como o estado humano por exemplo, esse ser, segundo o grau espiritual que alcançar, sairá por uma ou outra das duas portas. No caso do pitri-yana, ele deverá voltar a um outro estado de manifestação, o que será representado naturalmente por um retorno à “caverna cósmica” assim considerada. No caso do deva-yana, ao contrário, ele não tem mais que voltar ao mundo manifestado. Assim, uma das duas portas é ao mesmo tempo uma entrada e uma saída, enquanto que a outra é uma saída definitiva. Mas no que diz respeito à iniciação, é precisamente essa última saída definitiva que consiste na meta final, de modo que o ser que entrou pela “porta dos homens” deve, se atingiu de fato sua meta, sair pela “porta dos deuses”.3. Já explicamos antes que o eixo solsticial do Zodíaco, relativamente vertical em relação ao eixo equinocial, deve ser considerado como a projeção, no ciclo solar anual, do eixo polar norte-sul. De acordo com a correspondência do simbolismo temporal com o simbolismo espacial dos pontos cardeais, o solstício de inverno é de algum modo o Polo norte do ano e o solstício de verão o Polo sul, enquanto que os dois equinócios, da primavera e do outono, correspondem por isso mesmo, respectivamente, ao leste e ao oeste (v. DIA). No entanto, no simbolismo védico, a porta do devaloka situa-se a nordeste e a do pitri-loka a sudoeste. Mas isso deve ser considerado apenas como uma indicação mais explícita do sentido segundo o qual se efetua a marcha do ciclo anual. De fato, em conformidade com a correspondência que acabamos de mencionar, o período “ascendente” se desenvolve do norte para o leste, e depois do leste para o sul. Do mesmo modo, o período “descendente” se desenvolve do sul para o oeste, e depois do oeste para o norte (v.Circunvolução); portanto, poder-se-ia dizer, com maior precisão ainda, que a “porta dos deuses” situa-se ao norte e está voltada para o leste, que é sempre considerado como o lado da luz e da vida, e que a “porta dos homens” situa-se ao sul e está voltada para o oeste, que é também considerado como o lado da sombra e da morte. Ficam assim exatamente determinados “os dois caminhos permanentes, um claro e outro obscuro, do mundo manifestado; pelo primeiro não há retorno (do não-manifestado para o manifestado); pelo outro volta-se para trás (na manifestação)”.4




  1. Cabe assinalar que o Zodíaco figurado com frequência no portal das igrejas da Idade Média está disposto de modo a marcar claramente essa divisão do ciclo anual. 

  2. Ver em especial o Bhagavad Gita, 8, 23 a 26. Cf. L ‘HOMME ET SON DEVENIR SELON LE VEDANTA. Uma correspondência análoga encontra-se no ciclo mensal, em que o período da lua crescente está relacionado ao deva-yana e o da lua decrescente, por sua vez, ao pitri-yana. Pode-se dizer que as quatro fases lunares correspondem, num ciclo mais restrito, às quatro fases solares que são as quatro estações do ano. 

  3. A “porta dos deuses” só pode ser entrada no caso de uma descida voluntária ao mundo manifestado, quer de um ser já “libertado”, quer de um ser que representa a expressão direta de um princípio “supracósmico” (ver INITIATION ET RÉALISATION SPIRITUELLE, cap. XXXIII). Mas é evidente que esses casos excepcionais não entram nos processos “normais” que estamos considerando aqui. Apenas indicaremos que se pode compreender assim com facilidade a razão pela qual se considera que o nascimento do Avatara ocorre na época do solstício de inverno, época que corresponde (no hemisfério norte) à festa de Natal na tradição cristã. 

  4. Bhagavad Gita, 8, 26. Pode-se notar que a “claridade” e a “obscuridade”, que caracterizam respectivamente esses dois caminhos, correspondem de forma exata aos dois princípios complementares, yang e yin, da tradição extremo-oriental. 

René Guénon