Muito tem sido escrito sobre as supostas doutrinas de Ibn Arabi — com muita frequência é rotulado de panteísta, monista, até mesmo herético, por aqueles que tentam reduzir o ambíguo mistério da Unicidade a algo mais confortável. Considerar a Unicidade da forma que Ibn Arabi a apresenta não tem nada a ver com noções simplistas como “todas as coisas são realmente Uma”. Para ele há dois tipos fundamentais ou aspectos da Unidade combinadas no Nome Wahid al-Ahad. Estes dois são provavelmente o significado original de Janus, a divindade romana bicéfala dos portões, que vigiava os dois lados. Por ser também o deus dos começos, deu seu nome ao mês que inicia o ano, janeiro. Um verdadeiro entendimento da Unicidade tem profundas implicações na visão de nós mesmos, pois a descrição que Ibn Arabi faz dos números é, na verdade, uma precisa descrição da consciência de si e da contemplação.
Ibn Arabi conecta este conhecimento à adoração, sendo entendida aqui em seu sentido mais universal:
Aquilo que é adorado por todas as línguas, em todos os estados e todos os tempos é o Um. Cada adorador, de qualquer tipo, é o Um. Portanto não há nada exceto o Um … e não há existência para outro que não o Um. Não há tal coisa como multiplicação: quando o Um se manifesta em dois graus inteligíveis, é chamado de dois, como este II; quando se manifesta em três graus é assim: III… Essa é a Unicidade de Deus, o Real: somos manifestados pela Unicidade do Real. Se Ele não fosse, nós não seríamos, mas nossa existência não necessita que Ele, louvado seja, não seja. (K. al-Alif)
Estas passagens nos permitem analisar alguns dos pontos-chave da exposição de Ibn Arabi. A Essência (dhat), base de tudo que existe, é Um, tanto essencialmente como pelo nome, e esta Unidade possui dois aspectos. De um lado, o Um denota a inefável Origem e Essência além de qualquer ideia de numeralidade, e talvez até mesmo chamá-la de Um ou falar de Unicidade é inapropriado. E Única em Si Mesma. O símbolo mais forte de unicidade transcendente é o conceito de zero, primeiramente desenvolvido na Índia no início da era cristã e depois muito usado por matemáticos árabes medievais. O termo árabe para zero, sifr (como o sânscrito shunya) significa “vazio” ou “vácuo”, isto é, a completa ausência de número. O mesmo princípio pode ser encontrado no manuscrito do século XII do Monastério de Salem: “Cada número vem do Um e este por sua vez do Zero. Há nisto um grande e sagrado mistério.” Para expressar isto em termos metafísicos, Ibn Arabi geralmente emprega o termo ahadiyyat al-ayn, que pode ser traduzido por Singularidade da Origem ou Unicidade da Essência, e é cauteloso ao afirmar que esse Único Um não pode ser conhecido.
Por outro lado, o Nome “Um” igualmente designa um significado que implica e requer numeralidade — que sentido haveria na palavra ou na ideia de “um” se não houvesse também dois e três e assim por diante? Esses “outros” números estão contidos dentro da Unicidade da Própria Essência, indiferenciados devido à dominância da condição de Ser Ela Própria, mas esperando em suspensão, como que para serem expressados. Representam possíveis expressões ou modalidades para aquela Essência e isso é o que Ibn Arabi chama de al-ayan ou al-ayan al-thabita, as essências, as realidades essenciais estabelecidas dentro da Unicidade. Os dois aspectos estão resumidos no Nome duplo Wahid al-Ahad.
Como se por reflexo de um espelho, essas essências ou possíveis expressões do Nome Divino também possuem dois lados. De um modo, essas possibilidades são idênticas à Própria Essência — o número três é uma possível configuração do Um e é simplesmente um modo de ver esse princípio unitário. De outro modo, as possibilidades são diferenciadas entre si — o três não é o dois, da mesma forma que a qualidade particular da misericórdia não é a mesma que a qualidade da vingança.
Quando essas modalidades são expressas no mundo visível, elas são “graus” nos quais e de acordo com os quais o Um se manifesta. O Um, enquanto ainda permanece na Unicidade, em Seu Próprio nível, Se manifesta nos graus de pluralidade. O Um não se torna múltiplo, simplesmente revela Suas múltiplas possibilidades inerentes. Como Ibn Arabi diz, um multiplicado por um é igual a um, enquanto um multiplicado por dois é igual a dois. Cada “coisa” manifesta a Unicidade de acordo com sua natureza, capacidade e possibilidade, e isto também tem dois aspectos: na medida em que a coisa manifesta o Um, possui uma imensa e extraordinária dignidade, que é sua própria e verdadeira unicidade; na medida em que a coisa aparece como si mesma, é transitória, limitada e “outra” que não o Um.
Quanto à causa da Auto-expressão Divina em formas, Ibn Arabi gosta de citar as palavras Divinas: “Eu era um Tesouro Escondido e queria ser conhecido, então criei o mundo para que pudesse ser conhecido.” (Hadith qudsi) O Tesouro Escondido são os Nomes e as possibilidades da existência em seus estados indiferenciados. O Amor é o motivo primeiro de toda a criação, e por amor a essas possibilidades de auto-expressão Ele criou o mundo, o “palco”, para que pudesse ser conhecido em todas essas diferentes modalidades. A Criação é para Ibn Arabi nada mais nada menos que o invisível tornado visível. Não há espaço substancial ou temporal entre Criador e criatura. (SHCI)